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DESTAQUE

Sob o olhar de Michelle Chevrand

Entrevista por Paulo Rossi e Pétrus David

Texto por Olívia Rebeca, Paulo Rossi e Pétrus David

O “Caso Evandro", também conhecido como “As Bruxas de Guaratuba”, chocou o país há quase trinta anos. Ocorrido numa cidade litorânea do Paraná, foi tema da quarta temporada do podcast Projeto Humanos, programa dedicado ao registro de narrativas individuais, idealizado pelo professor e jornalista Ivan Mizanzuk. Desde então, o crime voltou a repercutir, e ganhou adaptação para as telas por meio do serviço de streaming Globoplay, sendo lançada em maio de 2021.

Michelle Chevrand, cineasta brasileira, foi co-diretora do documentário e uma das responsáveis por sua produção. Nascida no Rio de Janeiro, trabalha com audiovisual há 17 anos, tendo produzido, em sua vasta atuação, desde coberturas de Copas do Mundo e Olimpíadas até episódios do Porta dos Fundos. Conforme se descreve em seu perfil no Instagram, é também “fixer, acrobata, velejadora, patinadora, observadora de pássaros e mãe do Jimi”.

Em conversa com a Corte Seco, Michelle fala sobre o processo de adaptação da série, conta bastidores, traz detalhes sobre o impacto da produção nas investigações e comenta as dificuldades em relação aos entrevistados.

Corte Seco | Michelle, como foi o processo de adaptação do podcast para a série?

Michelle Chevrand | Tínhamos um material muito, muito rico, da pesquisa do Ivan, e isso possibilitou que a gente conseguisse ter muitos elementos pra trabalhar. A gente já tinha ali uma pesquisa bastante consolidada. O que eu sempre falo é que, assim, podcast tem uma linguagem. O Ivan tem uma característica de contar história muito bem, o storytelling dele é muito bom, mas acaba que o podcast fica muito focado na figura do Ivan contando a história, com alguns áudios, alguns elementos, algumas entrevistas que ele faz que são muito boas. E a gente na série sabia que tínhamos outros elementos pra contar história, muito material de arquivo, vários entrevistados para dar o seu ponto de vista, então conseguimos, com isso, dinamizar. Temos um conteúdo do podcast que é gigantesco e a gente consegue ali resumir em 8 episódios, depois acabou sendo 9. Na série, de fato, contamos com recurso visual que podcast não tem. E eu acho que a gente teve muita sorte de ter adaptado um podcast com tanta qualidade, com um trabalho tão sério, isso inclusive até ajudou na produção da série porque, graças a esse trabalho do Ivan ser reconhecido por muitos dos nossos entrevistados, a gente já tinha uma porta aberta pra conversar com eles e para perguntar se topariam dar entrevista. Então essa adaptação do podcast foi muito feliz, assim, pra gente.

Corte Seco | Em questão de adaptação é mais comum vermos de livro para audiovisual. Muitos elementos técnicos vocês já tinham ofertado no podcast pelo trabalho do Ivan, pelo trabalho do pessoal do áudio. Que elementos vocês viram no podcast que pensaram: "esses não podemos deixar de colocar também, nem que seja pra deixar um gostinho de memória para quem tá vindo do podcast pra série”?

Michelle Chevrand | É, você já citou aí, né? A trilha sonora, na verdade, a gente usa muito. A estrutura da série é muito próxima da estrutura do podcast, em termos de conteúdo. A forma como o Ivan apresenta o caso tem uma construção do que ele é, na tese da acusação, e aí, de repente, o caso vai desmoronando, temos ali uma estrutura muito semelhante. Em termos técnicos, a trilha sonora foi uma coisa que desde o início sabíamos que precisaríamos manter o Felipe Ayres, compositor de trilhas do podcast. A gente precisava justamente trazer esse elemento pro ouvinte identificar, lembrar e ter essa conexão. Todo mundo falou isso depois que a gente lançou a série, muitos tweets falaram "cara, que legal que eles usaram a mesma trilha". Inclusive, é uma trilha muito boa, né? Gera muito suspense, uma certa dose de terror, quando o Ivan apresenta algum elemento que é polêmico, ou que é uma coisa surpreendente do caso, tem aquela trilha assim que cê fala: "caralho!". Muitos entrevistados falam de alguns assuntos, mas esses assuntos não estão conectados, então a figura do Ivan, desse cara que é o jornalista investigativo, que estuda o caso há muito tempo, que foi lá, que pesquisou, que leu as milhares de páginas do processo, é que vai conectando tudo. Ivan faz isso muito bem, porque ele tem também esse poder de visão muito grande, então trouxemos com certeza a trilha, a gente trouxe o Ivan, a gente traz essa estrutura, e... é isso. Com os materiais de arquivo que o Ivan conseguiu coletar ao longo do tempo, tínhamos muitas fitas, muitos VHS digitalizados, VHS dos julgamentos, um material muito rico. A gente traz esse material junto com algumas entrevistas, por exemplo: usamos trechos da entrevista do Diógenes, feita pro podcast.

Corte Seco | Uma coisa interessante, principalmente no podcast, é a forma de narrar o tempo, que é diferente. No começo, é cronológico, depois há uma reviravolta, um evento que vai complementando, que vai sendo desconstruído... é quase um vai-e-vem do tempo, dos fatos. Como foi organizar isso em uma série, de forma que ficasse coeso?

Michelle Chevrand | É, muito veio do trabalho dos roteiristas, né? O que acabou acontecendo é que, como a gente tinha o Ivan, os roteiristas, por exemplo, não leram tudo do processo, eles leram partes específicas que o Ivan já tinha mapeado, que eram importantes pra história. O Ivan ficou cerca de seis meses na sala dos roteiristas contando a história. Muito trabalho de leitura a gente conseguiu pular, tinha o próprio podcast como uma grande fonte de informação. Eu e o Aly ouvimos o podcast, então a gente já tinha uma base bem sólida. Fizemos realmente o que a gente chama de elipse, saímos da ordem cronológica, fomos lá no passado, inclusive vamos fazer também na série de Altamira, que eu acabei de ler. Algumas coisas precisam ser retomadas para a compreensão da história. São coisas que a gente consegue fazer super bem em série e no podcast: contamos o que aconteceu lá atrás para continuar a história. Então, isso foi um recurso importante para o podcast e foi um recurso importante para a série também.

Corte Seco | Em uma entrevista que o Ivan deu para a Carol Moreira, ele estava falando que a ideia para a adaptação veio antes mesmo dele finalizar o podcast. Em que momento você chegou nesse processo? Como foi esse período? Quanto tempo de produção a série teve?

Michelle Chevrand | O convite surgiu pra mim em meados de 2019. O Aly foi convidado para ser diretor pela produtora Maíra Lucas, dona da Glaz. Maíra convidou o Aly para fazer a série, e o Aly me convidou antes para ser diretora assistente, e depois acabei virando co-diretora. O processo do podcast foi muito interessante, porque, quando começamos a produzir a série, a pesquisar, achávamos que o podcast tinha acabado e Ivan também; o que aconteceu foi que, no período em que estávamos desenvolvendo os roteiros e um pouquinho antes da gente começar a produção, ele conseguiu, através de uma fonte, receber aquelas fitas, e aí resolveu reabrir o podcast. Quer dizer, gravar mais episódios. Achávamos que já tínhamos bastante material, mas na verdade não era tudo, né? Ainda surgiu mais coisa. O Ivan também estava num processo de escritura do livro e eu acho que o livro também trouxe outras descobertas para ele. É um caso realmente muito amplo, muito vasto, com mil desdobramentos. As portas vão se abrindo pra Ivan: quando a gente estava fazendo os roteiros, ele tinha recebido o inquérito do Leandro Bossi que antes estava em segredo de justiça, mas a delegada entregou-lhe para ler, e ele começou a conversar com ela sobre reabrir o caso.

Corte Seco | Michelle, a estrutura do podcast, da narrativa principalmente, por causa do storytelling e por ser true crime, tem o formato de thriller, com alguns elementos como plot twists, o cliffhanger no final de alguns episódios, o prolongamento da tensão ou quando vocês mostram a Celina recebendo a notícia que encontraram o material novo, com um corte anterior de Ivan explicando como conseguiu essas fitas... Esses elementos foram incluídos de forma proposital ou ao longo da criação dos roteiros dos episódios?

Michelle Chevrand | Foi tudo proposital. Na verdade, a equipe de roteiristas que trabalhou com a gente é incrível, inclusive muitos deles vêm da ficção. Então, são roteiros já prontos para filmar e todos continham uma estrutura dramatúrgica bem sólida. Toda a “estruturinha” está lá, né? Os pontos de virada, os cliffhangers, os elementos para poder criar essa série de maneira que a gente pudesse criar o suspense. Obviamente, na hora da edição, alguma coisa ou outra muda. Os roteiristas com os quais trabalhamos trouxeram muitas adaptações de coisas que acharam que não funcionariam muito bem. Sugestões a gente trocou muito com os editores também, eu e o Aly.

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Diretores de O Caso Evandro Michelle Chevrand e Aly Muritiba. Fonte: Arquivo pessoal (Via O Globo)

Corte Seco | Um dos episódios mais esperados da série, querendo ou não, era o 7, que é a revelação das fitas de tortura e as apresentações delas. Tanto para o público quanto para os torturados, essa foi uma carga emocional inigualável. Levando em consideração essa carga, como vocês decidiram quem iria ouvir o quê, que partes iriam ser reproduzidas, e como mostrariam essas reações no corte final?

Michelle Chevrand | Quando o Ivan descobriu as fitas, o roteiro do episódio 7 era outra coisa, a gente não ia falar das fitas, a gente não sabia que elas existiam, então tivemos que reabrir o roteiro. Os roteiristas tiveram que escrever baseado nessa descoberta, e o que aconteceu é que a gente tinha muito medo, antes de filmar, de “flopar”, de dar muito errado, porque, por exemplo: o promotor, o Paulo Markowicz, a gente achou que ele ia ouvir a primeira fita e falar “vou embora, tchau”, e sair do estúdio. Ficamos com bastante receio, também, da reação da Celina, da Beatriz, do Davi, do Bardelli, porque ainda mexe muito com o emocional deles, apesar de tanto tempo. Então, na verdade, esse trabalho de seleção de trechos começou muito com o Ivan; ele é super minucioso, fez um documento gigantesco… muito interessante até esse documento, eu adoraria poder compartilhar com vocês. Mas era assim: “Bardelli: mostrar esse trecho; Se o Bardelli não quiser ir embora, mostrar esse trecho”. Foi assim com todos eles, fomos orientados assim: “se sentir que ele está um pouco resistente, não fazer essa pergunta”, sabe? O roteiro do Ivan era muito preciso; Celina: “se ela se emocionar muito, melhor não mostrar esse trecho”, porque a gente também não queria que ela se emocionasse a ponto de passar mal, qualquer coisa assim. Era tudo muito decupado: o áudio estava ali no roteiro, todos os trechos, e o Ivan inclusive transcreveu, e a gente ia sentindo na hora; Tinha tudo lá pra mostrar pra todos eles, e eu e o Aly, em algum momento, sentamos e falamos “cara, não vamos mostrar tudo, porque... não precisa assim…” E a gente selecionou pontos que achamos mais cruciais pra mostrar pra cada um deles. Por exemplo, quando a Beatriz diz "Socorro!", que ela tem certeza que é o grito dela, só mostramos esse trecho pra ela, aí a gente pensou “poxa, pra quem que vamos mostrar o trecho do Vicente sendo torturado?”. O Vicente não estava lá, aí pensamos: “poxa, quem é a pessoa mais próxima do Vicente? Bardelli”; aí a gente foi e mostrou pro Bardelli. Na verdade, íamos construindo desse jeito, mas com muito, muito temor. Tudo foi muito planejado, inclusive para não cansá-los demais. O Bardelli se emocionou, a gente já tinha decidido que íamos mostrar poucos trechos...

A princípio, a gente ia mostrar todos os trechos pra todos eles; o trecho do Osvaldo, pra Celina, pra Beatriz, pro Markowicz, pro Bardelli, pro Davi... Depois, pensamos que não. Na verdade, obviamente não entrou tudo no ar, né? A gente tem mais coisas gravadas de reações deles, mas conseguimos colocar no episódio só as reações mais importantes, e aí acabou funcionando muito bem. Ficamos muito surpresos com o resultado. Quando o Paulo Markowicz fala “é… sessão de cinema é que não é, né?”, eu me lembro que olhei pro Aly e ele falou que por dentro tava vibrando. Cara, que bom que esse cara reconheceu, mas, ao mesmo tempo, eu não podia reagir, então engoli e continuei. Então quer dizer, também tem essa frieza de não reagir junto. Foi bonito o final, com a Celina, a gente entrava com cada um separado no estúdio e ninguém viu a gravação de ninguém. A Beatriz não via a gravação da Celina, a Celina não viu a da Beatriz, porque, normalmente, elas assistiram a gravação da entrevista uma da outra, mas, nesse dia do estúdio, era um por vez, e tinha que voltar e não podia falar nada. A orientação era que o produtor pegasse a Celina, tirasse do estúdio, levasse pra outro lugar, e a Beatriz entrava... a gente separou eles, porque a ideia era não perder o ineditismo de mostrar as fitas. Foi tão bonito, porque no final a Celina abraçou o Aly e falou assim: “cara, vocês são anjos da guarda”. Ela sempre fala isso pro Ivan e pra gente: "vocês são anjos da guarda, finalmente a gente vai poder provar a nossa inocência". E foi muito emocionante, todo mundo no estúdio chorou, foi bem bonito, acabou funcionando muito bem.

Corte Seco | Você pode comentar sobre a repercussão política, repercussão no Brasil, da série?

Michelle Chevrand | A gente fala disso no episódio 9, que ficamos sabendo que o próprio Paulo Markowicz, depois que ouviu as fitas, mandou um pedido de apuração para a promotoria de Guaratuba, para investigar, reabrir o caso, mas não conseguiu dar seguimento. Mostramos no episódio nove, também, que o Figueiredo Basto acabou de concluir, essa semana me mandou a foto, o espelho da primeira página do processo do pedido de reparação. Apareceu também o Requião, né? Depois de muitas, muitas tentativas de entrevistá-lo, depois que a série foi ao ar, ele apareceu. Abriu-se um processo no Ministério Público de Curitiba para apurar também os fatos. A coisa está ganhando desdobramentos. A gente ficou muito preocupado, eu e o Aly, principalmente, com a condição de vida do Davi e do Osvaldo. Assim, são pessoas muito pobres, que tiveram que começar muitas vezes e sofreram muito com essa história. A Celina e a Beatriz têm uma boa condição, apesar de tudo, de toda humilhação, de todos os constrangimentos que elas sofreram ao longo dos anos. Elas tem uma boa condição, o Davi e o Bardelli também tem uma condição de vida razoável... mas, realmente, o Davi e o Osvaldo... muito difícil. Dá muita pena, esse processo destruiu a vida dessas pessoas. Um pedido de reparação é o mínimo. Uma reparação é o mínimo que o Estado poderia dar para essas pessoas. Depois de todos esses anos, os traumas e as provações que eles sofreram não tem como corrigir. Pelo menos, que eles possam ter um final de vida mais confortável, isso que a gente espera.

Corte Seco | Michelle, falando sobre essas repercussões, o episódio 9, com o Osvaldo e a entrevista correspondente, no podcast… foi uma surpresa para todo mundo, depois de anos, ele revivendo toda aquela experiência traumática, desde a chegada na cidade. É muita dor a ser revivida, a ser rememorada, a perda do Vicente, um grande amigo que morreu na cadeia sem conseguir provar sua inocência. Foi exibido também o contato de uma das crianças desaparecidas… Como vocês reagiram a tudo isso? Como vocês receberam o Osvaldo?

Michelle Chevrand | Foi bem interessante, porque foi tudo muito rápido. Lembro que eu estava no carro com o Aly, a gente estava viajando, acho que vindo de algum lugar, e o Davi me mandou uma mensagem dizendo "tô falando direto com o Osvaldo aqui pra ele ouvir o podcast, ele tem que ouvir o podcast, ele tem que deixar de ser teimoso". Eu falei "caramba, Davi, você tá em contato com o Osvaldo?", porque, lá atrás, quando a gente tentou contato com ele, ele falou "não falo sobre o assunto, não quero que vocês entrem em contato comigo mais, essa história não existe nem pra minha família, eles não sabem e eu não quero reabrir isso". O Davi me mandou essa mensagem, eu olhei no carro e falei "meu Deus, o Osvaldo...". O meu sonho pessoal era conseguir falar com ele, que ele assistisse a série, e ouvir a opinião dele, saber como ele estava, enfim... queria muito falar com ele. O Davi mandou essa mensagem e falou "eu estou falando com ele aqui, ele vai ouvir o podcast. Agora, ele falou que vai ouvir. Ele falou que os filhos dele tão falando pra ele ouvir e tal". Depois de um tempinho, Beatriz mandou mensagem falando "olha, achei o Osvaldo. Ele usa um perfil no Facebook de 'O caçador', mas eu tô falando com ele direto, botando uma pilha pra ele assistir a série". Um dia, a gente estava fazendo uma live sobre o livro que elas escreveram, o Malleus, e entra “O caçador”. Então, a Beatriz falou "gente, o Osvaldo tá aqui!" e eu falei "Osvaldo, pelo amor de Deus, fala com a gente!". O Aly também falou "me procura, fala com a gente. A gente quer muito falar com você". O que aconteceu foi que a Beatriz passou o contato do Aly para o Osvaldo e ele entrou em contato. Um dia, ele escreveu pro Aly, no WhatsApp, falando que estava muito agradecido, que as pessoas estavam falando com ele que tinham visto a série, que tinham ouvido o lado dele, que ele era inocente. Percebemos, logo de cara, que o Osvaldo era uma pessoa que precisava muito falar do caso, quase que um trabalho meio terapêutico de escuta. Eu falava pro Aly "vamos deixar ele falar". A gente sabia que ele precisava falar, que era importante para ele colocar para fora todos esses anos de sofrimento. E ele tinha muita coisa para falar. Um dia, a gente encontrou o Ivan em Curitiba, para tomar um café. E o Ivan comentou "um dos sobreviventes apareceu, uma das crianças desaparecidas... apareceu um menino que foi desaparecido na época, ele me procurou". O Ivan contou essa história, a gente ficou muito impressionado. Ao mesmo tempo, o Globoplay virou para o Ivan e para o Aly, descobriu que a gente estava em contato com o Osvaldo, e o Erick Brêtas falou "vamos fazer uma entrevista com o Osvaldo?". E foi assim: "eu quero estrear no dia tal, vocês têm duas semanas para produzir". E aí eu falei "meu Deus, o Osvaldo não tá pronto ainda". Eu achava que o Osvaldo não estava pronto, porque a gente ainda estava criando uma relação de aproximação com ele. Ele estava muito traumatizado, até chorava muito, então sabia que a gente precisava ficar em contato com ele, mas aí tinha esse prazo e um dia a gente falou para o Osvaldo: "Osvaldo, a gente precisa fazer uma entrevista com você". Ele: "não, não quero. A imprensa nunca foi boa comigo". E aí entrou a Beatriz, num trabalho de convencimento do Osvaldo. E foi assim: um dia, o Osvaldo falava que sim; no dia seguinte, ele falava que não. Até o dia que a gente marcou a data da entrevista. A mulher dele, a Lu, entrou no circuito e a gente marcou "Lu, dia tal a entrevista. A gente vai chegar na tua casa". Pra nossa sorte, a Lu, na véspera, falou assim "cara, é melhor vocês trazerem a Beatriz pra essa entrevista, porque, se o Osvaldo não quiser dar a entrevista, é bom que alguém que passou pela mesma coisa que ele esteja junto". E a gente levou a Beatriz, o que foi a nossa sorte, porque chegamos e o Osvaldo falou "eu não vou dar entrevista". Aí falei "vem, Beatriz"... ela estava escondida na van, porque a gente ia filmar o encontro deles. Acabou que eu não filmei. Trouxe ela e falei "Beatriz, vem cá, você precisa conversar com o Osvaldo". Ela sentou com o Osvaldo, abraçou o Osvaldo, choraram juntos, conversaram e ele topou. E aí a gente filma o encontro deles, que, na verdade, não foi o primeiro, mas a gente pediu para eles refazerem o encontro, porque eu achava, pessoalmente, que ia funcionar muito na série. E foi graças à Beatriz. De princípio, ele queria fazer de costas, mas, depois, ele falou "não, vamos fazer de frente". E foi bonito ver e isso me emocionou muito, chorei muito nessa entrevista. O Osvaldo tá cercado de pessoas que amam muito ele, que apoiam muito ele, e que dão muito suporte pra ele: a esposa (a Lu), a sobrinha Vanessa, os filhos que passam na série... então, realmente, o Osvaldo tem essa sorte de estar cercado de pessoas que cuidam dele, que estão com ele. A gente saiu de lá com essa certeza de que ele realmente precisava falar. E além disso, a gente entrevistou a Patrícia, do SICRIDE, para falar desse caso do menino que reapareceu, que era um desaparecido na época. A gente criou esse recurso do Ivan ligar para ele, porque ele era de outra cidade e não podia vir. Tínhamos que filmar tudo em uma semana, então esprememos todo mundo naquela semana. E esse menino… o Ivan fez a ligação com ele e fez a entrevista pela ligação e fizemos uma nova entrevista com o Ivan, pra ele contar os desdobramentos com o Figueiredo Basto. E acabou que esse episódio foi um episódio, por exemplo, que a gente não teve roteiro, não deu tempo de fazer um roteiro. Eu e o Aly, no carro, anotamos o que a gente ia ter no episódio, fez uma escaleta, que é tipo uma lista de ações, e foi com isso que a gente filmou. E aí acabou funcionando super bem.

Corte Seco | O final desse episódio extra termina com uma música do filho do Osvaldo, um rap... muito emocionante...

Michelle Chevrand | É muito lindo, né?!

Corte Seco | Esse ano, no final de Junho e começo de Julho de 2021, o Brasil inteiro acompanhou o caso do Lázaro. Trinta anos se passaram e os suportes midiáticos voltam à narrativa do “pânico satânico”, ao “pânico moral”. Como é que você vê essa tendência de esse estereótipo violento estar sempre sendo resgatado para sujeitos específicos, já que o “pânico satânico” é fio condutor do “Caso Evandro” do começo ao fim? Como vê essa perpetuação?

Michelle Chevrand | Na época do “Caso Evandro”, eu compraria o discurso da [Cristina] Padiglione, quando ela fala que as redações eram muito pouco representativas. Era uma imprensa branca, de um único viés religioso. Quer dizer, se conhecia muito pouco das religiões de origem afro-brasileiras. A gente tinha muito preconceito, não só no Brasil. O "pânico satânico" é um fenômeno mundial. Agora pro Altamira, eu assisto reportagens falando da "Seita Luz", da Argentina também, que misturam tudo... 'diabólico' e 'vela preta'... é uma salada de frutas bizarra. Essa ignorância, esse preconceito, esse desconhecimento das religiões e dos rituais e o “pânico satânico” são fenômenos muito fortes nos anos 90. Mas, hoje em dia, me assusta muito que ainda exista e eu fico me perguntando, porque o caso de Altamira também tem muito isso. Foi um caso que perdurou ali do final dos anos 80, início dos 90, até 2004, que foi o julgamento da Valentina de Andrade, também tinha muito esse viés da bruxa, do ritual satânico, da seita, tanto que quando descobrem que o serial killer, o [Francisco das] Chagas, pode ter sido responsável por todas essas mortes, as pessoas não acreditam, as famílias das vítimas não acreditam, porque não pode ser um cara comum que simplesmente resolvia matar porque dava na telha dele. Tem que ser uma coisa maior. A explicação que eu penso, eu não sou uma estudiosa do assunto, talvez não seja a melhor pessoa pra falar, mas o que vem na minha cabeça é a origem da nossa cultura. A gente tem uma cultura muito ligada à religião católica e, agora, às religiões evangélicas, e o povo brasileiro é muito conservador, então ainda existe muito preconceito. Parecia que a gente já tinha superado, mas o caso do Lázaro foi muito emblemático de como não superamos. O cara, na verdade, era meio que um tipo muito comum no Brasil, que é o pistoleiro, que mata pra fazendeiros, pra coronéis... A forma como ele foi caçado, como um animal... e essa polícia fascista que "ah, tinha que matar o cara", não tinha mais uma ideia de capturar, prender e estudar esse cara. Eu falava pra todo mundo "gente, esse cara é um ninja! Ele tá conseguindo fugir da polícia, ele consegue se esconder, ele é tipo... vamos estudar, vamos estudar o perfil psicológico desse cara, vamos estudar quem esse cara é e como ele conseguiu fazer uma fuga tão fantástica". Mas não, as pessoas só querem matar, porque "bandido bom é bandido morto"... a ideia que ficou nas nossas mentes ainda, e muito em função do Tropa de Elite ter passado. Acho que o Tropa de Elite ajudou muito nesse processo da sociedade brasileira ter se tornado tão fascista. É impressionante que ainda exista realmente gente que acredita nessas histórias, “missa negra”, “ritual satânico".

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Cenas de O Caso Evandro. Fonte: Divulgação

Corte Seco | Michelle, conta agora sobre projetos futuros. O quê você está fazendo? O que vem aí?

Michelle Chevrand | A gente está, nesse momento, desenvolvendo a nova série, que é uma sequência do “Caso Evandro”, sobre os “Emasculados de Altamira”, o caso que aconteceu no Pará também no final dos anos 90. Assim como o “Caso Evandro”, pessoas foram presas, julgadas, condenadas, e é mais bizarro que o “Caso Evandro", porque não tem confissão. Na verdade, toda a acusação se baseia em boatos, em fofocas na cidade, em "disse me disse" que "fulano disse que viu fulano com a camisa suja de sangue"... e as coisas vão virando verdades. É bem interessante, também, pelo aspecto de perceber que existe esse outro Brasil, o Brasil esquecido. Desde a construção da Transamazônica, que a Floresta Amazônica era vista como o “Diabo Verde” a ser combatido, a ser expurgado, a ser conquistado, e como esse processo desenvolvimentista, que começou na Ditadura e culminou em Belo Monte, não se preocupa com as pessoas que moram no lugar, em desenvolver um lugar pro bem daquela população. As pessoas continuam cada vez mais esquecidas, a violência cresce.

Corte Seco | Existem muitos cinéfilos no Cariri, tem toda uma produção de audiovisual aqui. Inclusive, no curso de Jornalismo, da Universidade Federal do Cariri (UFCA), um dos trabalhos de conclusão de curso pode ser documentário e muitas pessoas optam por esse produto. Há desejo em implementar um curso de Cinema, mas a Universidade agora está lutando, como todas as outras, para não fechar, e a abertura de novos cursos está suspensa. Qual seu conselho para as pessoas que gostam da área do audiovisual, que gostam de produzir?

Michelle Chevrand | Ah legal! Eu posso falar por mim, assim, a minha formação não é cinema, né? Eu sou jornalista como vocês. Estudei Jornalismo, mas acabei trabalhando na faculdade com TV, trabalhando na TVPUC. Depois, me interessei muito por audiovisual, com as aulas de vídeo-jornalismo. Então, assim que eu saí da faculdade consegui emprego na primeira produtora, e me lembro que era uma função meio coringa, meio estagiária, já era formada, mas ainda trabalhava como estagiária. Me lembro, quando eu fazia mais trabalho de produção, meio secretária da produtora, que quando eu tinha tempo, ficava na ilha de edição vendo a contadora editar e perguntando, e aprendendo. Foi muito autodidata pra mim, o audiovisual. Sempre indico pra quem quer trabalhar, qualquer função que você execute em um filme, "um terceiro assistente de direção, uma assistente de produção...", dá pra aprender, sabe? Se a pessoa estiver ligada, estiver prestando atenção no que está acontecendo. Estar no set é muito bom, numa sala de produção é muito bom, então assim, se jogar mesmo, na primeira oportunidade. E aí, falando do documentário, acho também que tendo uma câmera hoje em dia (a gente tem até o celular), uma boa ideia, uma boa história… Eu sempre brinco: ideia não é projeto; para se ter um projeto, você tem que ter uma história pra contar. E ela tem que fazer sentido, tendo uma boa história e uma câmera, você consegue produzir um documentário. Acho que é isso, um pouco botar a mão na massa mesmo. Às vezes, a gente fica esperando um trabalho, um convite, uma coisa formal... "pô, mas eu tenho uma ideia legal, uma vizinha, uma velhinha que tem uma história super legal, que eu tenho vontade de filmar, de entrevistar, de conversar"... o documentarista é um curioso, né? É uma pessoa que, assim como o jornalista, gosta de ouvir as pessoas, gosta de ouvir histórias... então, eu sempre acho que dá pra fazer. Obviamente, é muito melhor fazer quando você tem uma estrutura. O Caso Evandro tinha uma super estrutura pra produzir, mas eu já produzi muita coisa no início de carreira sozinha. Minha primeira série como diretora pro Canal Curta! não tinha grana, porque o orçamento era X e o canal falou "não, a gente não vai poder pagar X, vai poder pagar metade de X". Então, eu fiz, captei o som, dirigi, fiz a produção. Depois, quando chegou na etapa de montagem, editei, porque não tinha como pagar um editor, então a gente acumula, a gente vai acumulando às vezes e é bom, você tem um processo de aprendizado, é mais sofrido, claro, né? Tipo, eu lembro que fiquei com crise de ansiedade, tinha que montar os episódios e entregar na data e o canal tinha que aprovar e tinha um problema com trilha sonora. Foi bem... difícil, mas foi um grande aprendizado. A faculdade precisar existir, né? A gente está num momento muito difícil do Brasil de Bolsonaro, de muitas portas se fechando, muitos recursos se esvaindo, o Fundo Setorial do Audiovisual que era um recurso incrível não existe mais, mas eu acho que a gente tem que acreditar que vai passar. Enquanto isso, buscar conhecimento, buscar aprender, colar em pessoas que você admira: "pô, eu tenho um colega da faculdade que tá produzindo umas coisas, vou colar com essa pessoa..." Enfim, é isso, vai buscando um jeito de aprender, sabe?! Acho que isso é o mais importante.

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