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ENSAIO

Entendendo o Movimento Zef

Uma análise Estética e Sociocultural sobre a audiovisualidade da banda sulafricana Die Antwoord

Juan Barreto

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Sixteen  (I Fink U Freaky - 2012) Gif gerado com Tenor

Etimologicamente, zef é a abreviação coloquial de Ford Zephyr; um modelo de automóvel barato, popular na África do Sul entre as décadas de 1950 e 1970 e que era customizado de um jeito extravagante pela camada pobre da população (classe operária) na tentativa de agregar mais valor ao veículo. O termo Zef passou a ser utilizado pela elite, de forma pejorativa, para designar tudo aquilo que fosse de origem ordinária tentando emular algo de qualidade superior.

Um século atrás, o escritor brasileiro Oswald de Andrade sugeriu que deveríamos metaforicamente devorar a cultura do outro (adquirindo assim, sua força) e digeri-la junto com a nossa (já internalizada), para a partir da mistura tentarmos extrair um elemento novo. Influenciada por essa corrente de pensamento antropofágico a geração pós-apartheid de artistas sul-africanos (inserida em um panorama globalizado) elevou Zef a categoria de Movimento Cultural, tendo como princípio básico o uso do que chamaremos aqui de “criatividade gambiarra”.

Estabeleceu-se então o conceito artístico de “original – lado B”, que consiste em acrescentar um tempero nativo aos “enlatados” estrangeiros (sobretudo norte-americanos) que lhes são empurrados goela abaixo ano após ano. Na música, o Movimento Zef conseguiu reverberar com maior amplitude por ser o ambiente ideal para se realizar experimentos. Mixar arranjos distintos, fundir um som no outro, costurar retalhos culturais, colar recortes entre si, juntar uma pecinha na outra até formar um grande mosaico identitário, a música nessa perspectiva abre comunicação com um tipo de público alternativo carente de representatividade

Em 2010, diretamente dos subúrbios da Cidade do Cabo, uma performance da banda Die Antwoord, composta pelos rappers ‘Ninja’ e ‘Yo-Landi’ (alter egos de Watkins Jones e Anri du Toit), figurava na lista dos vídeos mais visualizados da internet. A dupla ganhou projeção internacional catalisando em seus projetos audiovisuais uma miscelânea de referências ocidentais e orientais, no começo chamaram a atenção por parecerem a caricatura hiper-realista de algum subproduto estadunidense, depois causaram alvoroço ainda maior ao se constatar que aquele deboche não era inofensivo.

Em Fatty Boom Boom (2012), um dos seus videoclipes mais famosos, acontece um rito de transição nas prerrogativas. É como se aguçar a curiosidade geral tivesse sido apenas a primeira etapa de um plano, concluída com sucesso, e de agora em diante estivéssemos testemunhando o início da fase dois intitulada “vocês riu da gente, agora nós vamos rir de você”.

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Fatty Boom Boom (2012) Gif extraído do clipe com Tenor

A SIMBOLOGIA PRESENTE NO VIDEOCLIPE FATTY BOOM BOOM

O vídeo se inicia no formato de curta-metragem, acompanhamos um simpático guia turístico fantasiado de caçador de safari apresentando aos passageiros (uma Lady Gaga genérica e seus guarda-costas) aquilo que seria uma típica cidade sul-africana estereotipada: hienas revirando sacos de lixo nas esquinas, pessoas afagando panteras e leões como se fossem meros animais domésticos, transeuntes cadavéricos e atrações exóticas se exibindo no meio da rua.

 

O transporte da excursão (cujo interior é decorado com peles de leopardo, tigre e zebra) é abordado por homens encapuzados e armados. Durante a troca de tiros entre bandidos e seguranças particulares, a cantora celebridade consegue fugir se embrenhando pelo labirinto urbano de concreto e aço. Após esse breve prelúdio, a narrativa da história é reconfigurada para o modo ‘videoclipe’ e a faixa musical finalmente começa.

 

O clima de provocação mútua, traçando paralelo entre culturas diferentes, permeia todo o clipe. A câmera fecha o enquadramento em um sorriso de escárnio que ostenta caninos de ouro enquanto pergunta de forma desafiadora: “Hey, Hi-Tek , Você acha que consegue fazer algo parecido com isso?” Em seguida, executa um solo de beatbox (técnica desenvolvida nas periferias de Nova York no início da década de 1980 e que consiste em imitar instrumentos de percussão com a boca). “Você quer dizer assim?” – Responde o DJ, tocando uma batida mais potente em sua bateria totalmente artesanal. De acordo com Silva (2013), existem tambores na cultura africana (como o ‘dundum’, por exemplo) que imitam tons fonéticos de alguns dialetos regionais e são usados inclusive para realizar comunicação à longas distâncias. 

 

Nesse projeto, Ninja e Yo-Landi interpretam (cada um) dois personagens opostos e para facilitar a compreensão os nomearemos de Yo-Landi #1, Yo-Landi #2, Ninja #1 e Ninja #2. O primeiro trecho de Fatty boom boom, por exemplo, é protagonizado pela Yo-Landi #1 irrompendo na tela paramentada de ‘boneca Abayomi’ versão bizarra.

Para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo dos tumbeiros – navio de pequeno porte que realizava o transporte de escravos entre África e Brasil – as mães africanas rasgavam retalhos de suas saias e a partir deles criavam pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam como amuleto de proteção [...] Sem costura alguma, as bonecas não possuem demarcação de olho, nariz nem boca, isso para favorecer o reconhecimento das múltiplas etnias africanas.

 

Com dois cifrões no lugar dos olhos ela dança frenética, gira em torno do seu próprio eixo enquanto entoa esganiçada: “Hey fatty boom boom! Hit me wif da ching ching! Fat pocket klinking! Dollar eye twinkling!” (Hey bunda gorda, me acerte com sua grana! Bolso cheio tilintando! Olho do dinheiro brilhando!).

— Vieira, 2015

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Fatty Boom Boom (2012) Foto: Divulgação

A mensagem que se quer transmitir é direta: depois de tanto forasteiro enriquecer saqueando a cultura e o "folclore" africano, chegou a vez do próprio povo africano faturar em cima disso “alugando” suas riquezas imateriais à preços módicos. Os russos comercializam suas Matrioskas, os japoneses exploram a imagem das gueixas, os mexicanos fazem o mesmo com às caveiras floridas, por que somente o continente afro deveria ficar de fora desse nicho mercadológico?

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Ilustração: Cauê Henrique

Na sequência, surge o Ninja #1: branco da cabeça aos pés, com listras vermelhas pintadas ao redor dos braços e vestindo calção de material sintético com uma barra azul na altura da cintura. Além da pele opaca (sem viço) ele possui a face corada, o semblante nervoso e as pupilas extremamente dilatadas, denotando estado de tensão elevado. Traz também um enorme “Chosen 1” (o escolhido) estampado no tórax. Essa figura é uma evidente alusão aos Estados Unidos, desde as cores da bandeira até o olhar injetado de quem vive em uma sociedade obcecada por demonstrações de autoafirmação.

O Ninja #2 vem em seguida, contrastando com o primeiro em todos os aspectos: aparece inteiramente negro e reluzente, trajando apenas um sarongue feito de palha (indumentária típica da dança do maculelê, que em sua origem era uma luta). A ausência de pupilas lhe atribui uma aura sobrenatural. As dançarinas (igualmente negras, reluzentes e sem pupilas) o circundam realizando uma coreografia de movimentos sinuosos, como quem executa um ritual de adoração à um Deus.

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Fatty Boom Boom (2012) Gif gerado com BENDERCONVERT

O escárnio presente neste trecho deve-se ao fato de artistas sul-africanos serem convidados a adentrar o território do colonizador para disseminar sua ancestralidade e ainda serem bem remunerados por isso. Diferente de um passado não tão distante assim, quando eram raptados e trazidos à força para o ocidente para servirem de escravos.

 

Yo-Landi #2 é a personificação da ‘Pomba-gira’ (entidade feminina pertencente a umbanda, que tem como característica principal uma personalidade vibrante e que exala sexualidade, despudor, rebeldia e perigo). Aparece rebolando ensandecida na frente da câmera acompanhada por bonecos vodus bailarinos que estão sob seu comando.

O seu figurino é pontudo, a postura corporal e os gestos são expansivos e belicosos. Exibe no rosto pinturas encarnadas que lembram aquelas que são feitas pelas tribos indígenas antes de guerrear. Com o discurso igualmente carregado de agressividade, traços de ressentimento se tornam perceptíveis no desenvolvimento da seguinte estrofe:

There's a rumble in the jungle I'm bubbling to the beat.

Not looking for trouble but trouble's looking for me.

M'uppercuts're fokken swollen with nothing just come for free.

I used to beg borrow or steal jus to hustle sumfing to eat.

Souf afrika used to be to dwankie to notice me.

Suddenly u interested cause we blowing up overseas.

Making money money money!

Yes, yes yes!

Zef side represent.

You're fuckin' with the best!"

(Há um rumor na selva de que eu estou empolgada com essa batida.

Não procuro por problema, mas o problema sempre procura por mim.

Meus bolsos estão cheios de dinheiro, mas nada disso veio sem esforço.

Eu costumava mendigar, pedir emprestado e roubar apenas para conseguir o que comer.

A África do Sul costumava me ignorar.

E de repente você está interessado porque estamos explodindo no “além-mar”.

Fazendo dinheiro, dinheiro, dinheiro!

Sim, sim, sim!

Sou representante do Movimento Zef.

Você está lidando com o melhor!)

 

De acordo com a versão exposta pela rapper, o seu trabalho precisou ser validado primeiramente no exterior (carimbado pelo selo de garantia do Tio Sam) para depois obter alguma relevância na sua própria terra natal. Ou seja, a musicalidade da dupla Die Antwoord é um produto ao mesmo tempo que caseiro, importado.

O vodu teve origem na África e foi trazido pelos escravos para a América. Os rituais de vodu são acompanhados de danças e músicas tocadas em instrumentos de percussão, e os participantes entram em transe quando incorporam os ‘Loas’ (bons e maus espíritos). O vodu resulta da união de 401 loas e da congregação de escravos de mais de 101 nações africanas, sendo a prática o lugar, por excelência, onde o haitiano reencontrou sua identidade perdida com o exílio da África. No culto do vodu está o desejo dos haitianos de se reportar ao lugar em que o sentido das coisas e dos acontecimentos não foi abalado: o seu próprio universo simbólico. Aí, a África perdida torna-se presente, os antepassados reaparecem, recompõem-se a ruptura da história”.

— Dalberto, 2015

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Fatty Boom Boom (2012) Foto: Divulgação

Outro ponto sensível abordado na trama é o racismo. O supracitado DJ Hi-Tek, que é negro, veste um capuz pontudo de carrasco remetendo aos que eram usados pela Ku Klux Klan (organização nascida no final do século 19 nos Estados Unidos, que defende radicalmente a supremacia branca, o nacionalismo exacerbado e a anti-imigração). Na versão “made in Afrika”, a fantasmagórica vestimenta do algoz racista é literalmente invadida por mensagens de amor, carinho, amizade, paz, alegria, esperança e respeito.

Do traje sem mangas, pendem dois braços musculosos de pele escura portando nos pulsos munhequeiras nas cores do Reggae; estilo musical caracterizado por pregar a harmonia dos povos em suas canções.

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Fatty Boom Boom (2012) Foto: Divulgação

Na parte final do videoclipe, o diretor reajusta a narrativa para o modo “curtametragem”. O expectador volta a acompanhar a Lady Gaga genérica após ela ter escapado da emboscada dos assaltantes. Aparentando desconforto físico a cantora adentra um posto de saúde, sendo prontamente atendida por um médico que retira da sua vagina um inseto.

 

O argumento que se quer sustentar com essa derradeira esquete é o de que a indústria do entretenimento norte-americano, o famigerado showbusiness, é um grande agente infeccioso. Tal qual um parasita, suga sem pressa os nutrientes do hospedeiro enquanto deposita seus ovos nele. Fatty boom boom se encerra com um leão (o rei da savana) perseguindo e devorando a celebridade (rainha do pop).

CONSIDERAÇÕES 

É importante destacar que o Movimento Zef não se trata de maquiar o velho para que ele tenha aspecto de novo, camuflando os defeitos existentes na tentativa de ludibriar o comprador. É sobre reciclagem, no mais amplo sentido da palavra. Se a tendência do momento é a cor verde, para o Zef o que importa é a sagacidade de misturar amarelo com azul e batizar o resultado de “amarezul” ou “azurelo”. É sobre inventar novos sinônimos para aquilo que já existe e oferecer novas opções de entendimento. Mais importante do que as coisas em si, são as conexões que essas coisas fazem com outras coisas.

A globalização transformou o planeta inteiro em uma aldeia e de acordo com a teoria da Diglossia Cultural, do historiador Peter Burke, em um futuro próximo transitaremos por completo entre diversas culturas com a mesma fluência com que algumas pessoas dominam vários idiomas. As grandes potências mundiais estão sendo obrigadas a perceber que “roubar” do outro é roubar de si mesmo à prestação, por isso que o Movimento Zef se esticou até alcançar a Europa sem jamais se desprender das suas raízes periféricas.

 

O nome Die Antwoord (que se pronuncia “Dí Antvórd”, pois pertence ao vocabulário africâner; língua nascida da interação entre colonizadores holandeses, alemães e franceses em território sul-africano) significa “a resposta”. Resposta para o quê? Talvez para uma forma mais pluralizada e moderna de se comunicar. Para quem? Para todos aqueles que um dia desdenharam da iniciativa.

Referências

ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Obra Completa. 3.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. p.11-19.

BELANCIANO, Vitor. Geração pós-apartheid. 2010. Disponível em: https://www.publico.pt/2010/06/11/culturaipsilon/noticia/geracao-pos-apartheid-258714 Acessado em: maio de 2018.

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. 2003. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Unisinus.

DALBERTO, Germana. Para além da colonialidade: os desafios e as possibilidades da transição democrática no Haiti. 2015. Porto Alegre, Secretaria Executiva de CLACSO. 2015, p. 26.

FATTY BOOM BOOM. Artista: Die Antwoord, produção de ZEF FILMZ em associação com a Egg Films, 2012, (5 minutos e 42 segundos), HD.

Orixás femininas nas religiões afro-brasileiras: força e simbolismo de orixás são adaptadas à nova realidade social no Brasil. Jornal Mulier – Julho de 2011, Nº 90. Disponível em: http://jornalmulier.com.br/orixas-femininas-nas-religioes-afrobrasileiras-forca-e-simbolismo-de-orixas-sao-adaptadas-a-nova-realidade-social-nobrasil/ Acesso em: maio de 2018. SILVA, José Carlos Gomes da.

Culturas Africanas e Cultura Afro-brasileira: uma abordagem antropológica através da música. 2013. Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. VIEIRA, Kauê. Bonecas Abayomi; símbolo de resistência, amor e poder feminino. 2015. Disponível em: http://www.afreaka.com.br/notas/bonecas-abayomi-simbolo-deresistencia-tradicao-e-poder feminino/ Acesso em: junho de 2018.

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