top of page

DESTAQUE

No colorido dos desenhos
 

Animações infantis se chocam em questões de visibilidade, representatividade e pink money, conforme personagens LGBTQIA+ crescem nas telas para crianças, adolescentes e adultos

Lançado em 1960 e dirigido por Alfred Hitchcock

colage2.png

Colagem: Cauê Henrique (Imagens de divulgação)

Cauê Henrique

Outro dia estava conversando com uma amiga sobre a quantidade de pessoas jovens e adultas acompanhando desenhos animados infantis. Não animações adultas extremamente coloridas e aleatórias, não. Desenho, daqueles que a gente via quando a Tv Globinho ainda não tinha sido destituída do trono de entretenimento infantil (embora a gente desse atenção às concorrentes). A realidade é que, entrando nas redes dominadas pelos jovens adultos e milennials de carteirinha, nós vamos encontrar grandes comunidades dedicadas às animações de conteúdo livre. 

 

Durante a conversa, minha amiga faz uma piada: “Claro, né, amigo, a gente é LGBT”, seguida de uma gostosa gaitada. Não é de se espantar: conforme as animações infantis migram das televisões e distribuições tradicionais de audiovisual para as telas de streaming, seus conteúdos adaptam-se drasticamente às novas experiências de contato na era digital. Esse processo impulsionou uma onda progressista na produção audiovisual que se arrasta há anos e tem resultado em um crescente número de adaptações, releituras e produções que se valem de públicos variados para gerar interesse de consumo em diferentes possibilidades criativas. E, lógico, devemos falar de pink money por toda essa discussão. Mas, mais do que isso, os desenhos animados têm cumprido duas funções interessantes para pensarmos enquanto sociedade: a reposição de infâncias perdidas de representatividade e a construção de novas percepções de vida para as quais certos tabus tornam-se apenas experiências.

 

A ideia de crianças tendo contato com o mundo queer é uma questão histórica de percepção sobre os grupos marginalizados pela cis-heteronormatividade. Isso porque pensar em pessoas LGBTQIA+,  durante muitos anos, foi pensar na propaganda anti-queer que as estruturas de poder social construíram. A norma que expulsa pessoas LGBTQIA+ do pleno convívio social o faz retirando primeiro a infância; a nossa e a dos que podem vir. As campanhas conservadoras vivem disso, inclusive, o inimigo projetado em toda pessoa LGBTQIA+ é na verdade a ameaça às crianças. Que ameaça e que crianças são essas, ninguém sabe. Mas é certo que existe um pavor do nosso contato com a infância, tanto que quando falamos em "criança viada" estamos pondo em risco o delicado sistema que presume a nossa existência apenas para a vida adulta.

 

Para situar melhor o desenho animado nessa disputa, a primeira animação considerada oficialmente acontece em 1892, enquanto desenhos produzidos de forma semelhante aos que conhecemos hoje só começaram a ser produzidos em 1908. Contudo, personagens LGBTQIA+ esperaram até o século XXI para ocupar de fato as animações como criações queers. E eu digo “de fato” porque, durante o século XX, narrativas que fugiam da cis-heteronormatividade existiram sob os panos de queerbait e características vilanescas. Imagino que todos conhecemos Scar (de O Rei Leão) e Ele (de As Meninas Superpoderosas), né? Acho que podemos reviver algumas dessas memórias com outros olhares. 

 

Durante anos, o Pernalonga fez drag e beijou Hortelino sem enfrentar os processos por conteúdo que criadores LGBTQIA+ têm de resolver após lançar suas criações diversas aos olhares do público. À época da criação do desenho, regras morais dos EUA como o Código Hays e as regulações de conteúdo da Comissão Federal de Comunicações já estabeleciam representar dois homens se beijando como conteúdo inadequado, mas o casal parece ter dado a volta nas regras utilizando-se do humor projetado sobre o tabu. É como se o único elemento mais extraordinário do que o coelho falante ou armas que entopem e viram seus canos fosse o de duas figuras "masculinas" se beijando; e, por isso, rir é permitido.


tenor.gif

O queerbait nada mais é que um mecanismo surgido de “enfeitar” um personagem com códigos a serem percebidos pela comunidade LGBTQIA+. Isso muitas vezes significa uma forte amizade, expressões de gênero não-normativas, entre outros indicativos que foram apropriados por jovens e crianças LGBTQIA+ como formas de identificação com seus amados personagens. Em alguns casos, a adoção desses códigos pode ser uma forma de conquistar um público sem necessariamente tornar explícita a relação com esse público e, em outros, uma forma de fazer piada.


Pernalonga beija Hortelino (Pernalonga) Gif extraído de Tenor

bugsbunny-drag.gif

Pernalonga em drag (Pernalonga) Gif extraído de Tenor

Eu nunca fui grande fã do Pernalonga, mas me apeguei muito ao demônio de gênero não-identificado que tecia grandes planos com um patinho de borracha. Ele (ou He) foi um elemento genial das infâncias queers, elaborando fins de mundo com grandes botas de salto e uma roupinha quase de quem fosse fazer a apresentação de natal em Meninas Malvadas. Adequadamente nomeado, o personagem era andrógino e tinha toda uma carga de estereótipos projetada sobre suas construções visuais e comportamentais. Assim como Scar (O Rei Leão) e Jafar (Aladim), é uma criação vilanesca à qual se atribuem aspectos de codificação LGBTQIA+. Um costume comum, visto que vilanizar tipos LGBTQIA+ não seria um problema, assim como ridicularizá-los. E, apesar de serem grandes personagens, o incômodo lugar persistente da vilania não deixa a sala.

tenor (1).gif

Him (Meninas Superpoderosas) Gif extraído de Tenor

É evidente que existiu um espaço reservado para as narrativas queer ao longo das produções audiovisuais e certos recursos precisaram ser adotados para manter algum nível de identificação LGBTQIA+; por isso, não acho que todas as criações que precisaram usar vias questionáveis são de fato questionáveis por inteiro, e isso precisa ser destacado. Criadores LGBTQIA+ também precisaram viver e criar códigos que podem ser mal vistos hoje, mas foram as saídas que existiam no momento em que se lançaram.


Dito isso, os últimos anos têm feito mudanças expressivas nas restrições (ou ausência delas) do que pode ou não ser exibido como conteúdo infantil. O uso de elementos fantásticos não visa mais a ridicularização, mas um senso de naturalidade que reconhece o fantástico como fantástico e o queer como simplesmente real. Aqui estou pensando particularmente em três criações que considero interessantes de observar: Steven Universe, She-Ra e The Owl House. Animações nem sempre tão leves, mas que têm especial habilidade em introduzir grandes discussões de forma natural, forjando na noção de mundo das crianças, por meio de situações incríveis, um senso da diversa vida em sociedade. São desenhos sensíveis, que lidam com inseguranças, medos e crescimento de forma gradativa e bem elaborada para ser absorvida pelo gosto infantil, com grandes espetáculos visuais e narrativas objetivas.

Steven Universe
 

As relações de gênero, expressão de gênero e sexualidade só não são o tema central de Steven Universe porque a existência de Steven toma o palco. Mas eu avaliaria que a própria noção de fantasia que o universo das gems introduz não está à frente da capacidade incrível de Rebecca em abordar essas experimentações da vida com carinho e precisão. Steven Universe não é sutil. É um desenho para quem grita o que se é, sem desespero por uma aprovação externa, embora muitas vezes seja essa a busca de Steven. Mas com certeza é um desenho delicado e cuidadoso. Sugar não se podou em trazer experiências vívidas das experiências LGBTQIA+ sem aparentar grandes esforços. A animação é alegre e pé no chão, tratando de temas muitas vezes complexos com a naturalidade com a qual eles acontecem na vida real. Ao mesmo tempo, somos jogados em um universo completamente fantástico e literalmente mágico de existências além da compreensão que nossa sociedade comporta. 

steven-universe-lede-1024x576.jpg

Fotos de Divulgação 

Existem muitas questões em torno dos debates de representatividade e visibilidade, especialmente quando falamos de desenhos animados e criações fictícias em geral. Além do elemento infantil, criar personagens é um extenso trabalho de pesquisa, que pede de produtores um equilíbrio cuidadoso. Mas o fundamental é que se crie, que se discuta. Também fomos crianças, assim como suas crianças, hoje, são LGBTQIA+. Existem infâncias em recriação bem debaixo dos seus narizes.

bottom of page