ENSAIO
E agora eu sou a mãe
Alguns aspectos da simbologia materna em três momentos da franquia Alien
Pétrus David
Sozinhos no meio do universo…
Em um ano qualquer, em uma rota em direção à Terra, a nave Nostromo vagava sozinha em meio às estrelas, carregando sete vidas quaisquer, irrelevantes. Todas elas são dispensáveis. O espectador sabe, avisado pelo pôster de divulgação, que, no espaço, ninguém pode te ouvir gritando. Ninguém vai ouvir os gritos de sofrimento daquela tripulação e não haverá ninguém para socorrê-los a tempo. O sangue vai ser derramado, vai escorrer e vai continuar escorrendo. A imensidão do universo põe aqueles seres em contato com o desconhecido e mostra o quanto eles são pequenos diante da vastidão escura. Quando acorda do seu período de hibernação, a tripulação da nave Nostromo renasce para uma incógnita: o que é aquilo que espreita? O espectador é deixado no escuro, até que é chegado o momento de encarar a ameaça de frente.
O horror é polissêmico. Um lobisomem, talvez, não seja apenas um lobisomem. Um fantasma, talvez, não seja apenas um fantasma. A arte trabalha a partir de camadas de significação e cabe ao espectador tentar desvendá-las. Quando as pessoas, em 1979, sentaram-se em suas poltronas de cinema e assistiram a Alien – O oitavo passageiro, elas deram de cara com temáticas caras aos cinemas de horror e de ficção científica desde, pelo menos, a década de 1950: o colonialismo e a xenofobia, como são bem pontuados na crítica da revista Sight and Sound. No entanto, havia um tema específico nesse filme que só foi sendo descortinado pouco depois. Faça um exercício de reflexão e se ponha no fim da década de 1970: e se alguém te dissesse que este é um filme sobre mães?
Medéia, as madrastas malvadas dos contos de fadas, Adora Crellin (a matriarca de Sharp Objects), Norma Bates (de Psicose)... essas são apenas algumas das representações narrativas de um certo tipo de figura materna, aquele que perambula pelo mundo dos mortos, por espaços obscuros e assumem posicionamentos, em sua maioria, fatais. Mas e quando essas figuras que agem em direção ao aniquilamento da prole não são de “carne e osso”? Como devemos entender essas figuras maternas quando elas nos chegam construídas de placas de aço? Como devemos entender esses símbolos quando eles não são exclusivamente representados em figuras humanas ou humanoides? A proposta deste texto é refletir sobre como algumas dessas simbologias maternas aparecem em três momentos da franquia Alien, sendo eles Alien – O oitavo passageiro (Ridley Scott; 1979), Alien – O resgate (James Cameron; 1986) e Alien 3 (David Fincher; 1992).
“Dallas, a mãe quer falar”: o materno em chapas de aço
Quando acordam do seu período de hibernação antes do tempo, os tripulantes da nave comercial Nostromo passam a se comunicar com um sistema operacional chamado MÃE. Este sistema é responsável por prover as informações que julga necessárias para que os membros da equipe possam se situar em sua jornada e na nova missão que lhes é dada. O curioso do roteiro é que, em nenhum momento, os personagens tratam o sistema de controle como apenas um sistema, sempre se referindo a ele pelo epíteto “Mãe”. Se os personagens se dirigem a essa forma inorgânica por esse nome (e, também, partindo do princípio de que essa não foi uma escolha arbitrária do roteirista), que camadas de significação podem ser descortinadas a partir dessa informação?
Em primeiro lugar, podemos encarar a própria nave Nostromo como uma espécie de incubadora e, por extensão, um útero. A partir do momento que acordam na sala de hibernação, os personagens do filme passam por um processo de segundo nascimento: o ambiente branco e clínico, calmo com a trilha sonora de John Goldsmith, os trajes que usam (apenas fraldas) e até mesmo os planos de transição que vão se sobrepondo e ganhando opacidade denotam isso. Não poderíamos considerar, então, essa calma como uma substituição placentária do segundo nascimento desses seres? A polaridade dormir/acordar, representante da polaridade morrer/nascer, é algo que é repetida algumas vezes em outros filmes, quando Ripley (Sigourney Weaver) volta a hibernar depois de sobreviver a um confronto com um Xenomorfo e sempre ser resgatada por outra tripulação.
Antes de passarmos para o segundo nascimento na Nostromo, devemos falar sobre outros elementos. Quando chegam ao planeta desconhecido e adentram a nave alienígena que emite o suposto sinal de ajuda, os membros da equipe se deparam com uma forma gigantesca e quase mumificada sentada em o que parece ser uma sala de controle (a sua origem só será abordada no filme de 2012, Prometheus). A explícita representação fálica deste ser e na forma como ele é organizado no espaço não dá aberturas para más interpretações. O trabalho do artista plástico suíço H. R. Giger e sua mão surrealista apenas contribuem com os contornos sexuais e maternos no filme. Pouco depois, encontram uma sala com objetos desconhecidos. A frase de Kane (John Hurt) é importante: “A caverna está completamente fechada e cheia de objetos de couro, como ovos ou coisa do tipo”. Aquele local fechado, escuro, subterrâneo, misterioso, protegido do mundo exterior e cheio de ovos se torna uma outra
imagem placentária.
De volta à nave. Se mencionamos a saída da hibernação da tripulação como o primeiro nascimento na Nostromo, o segundo nascimento ocorre quando o Xenomorfo explode do peito de Kane. É a partir daqui que a Nostromo assume uma outra forma materna. Antes, a nave gestava os humanos e salvaguardava suas vidas. Com a chegada do Xenomorfo, ela também passa a gestar aquele que viria a ser o fim de sua tripulação e, consequentemente, de si mesma. Em um plano simbólico, a nave, ao mesmo tempo, dá e tira a vida. Com o nascimento do alienígena, a nave deixa de cumprir com as expectativas de proteção que a Mãe iniciara o filme promovendo, lançando seus “filhos” em uma jornada mortal. A forma como a nave é construída e apresentada nos bombardeia com um imaginário de matriz uterina: corredores alongados e escuros, jogando sombras sobre os personagens, câmaras e mais câmaras pequenas, inúmeros portais se abrindo e se fechando.
Esses ambientes uterinos serão as principais ambientações dos dois filmes seguintes: um complexo em uma colônia, em Alien – O resgate, e os labirintos do complexo, em Alien 3. Vale ressaltar que não são somente os espaços em si que projetam essas imagens sobre maternidade e gestação, mas principalmente os espaços menores que os compõem e em como eles são agenciados no todo narrativo: são os corredores escuros, as câmaras fechadas, os quartos, os dutos de ventilação, a fornalha, as salas comunais onde os personagens comem, etc. E todos esses espaços estão sempre no limiar entre vida e morte. Uma cena bastante representativa pode ser encontrada em Alien 3, quando o corpo de Newt (Carrie Henn) está sendo cremado na fornalha. Nesse exato momento, está ocorrendo o nascimento do Xenomorfo. A composição dessa cena, entrecruzando partes desses dois momentos específicos, utiliza as duas pontes do binômio vida/morte como complementares, sendo reforçada, ainda, pelo discurso do líder religioso: “Pois dentro de cada semente, há a promessa de uma flor. E dentro de cada morte, não importa quão pequena, há sempre uma nova vida”.
Uma outra representação materna está na própria personagem Ripley. No primeiro longa, pouco se sabe do passado e das motivações daqueles personagens. O espectador desenvolve empatia por estes apenas por meio do sofrimento que eles passam. Cumprindo seu papel virginal de final girl, Ripley confronta o Xenomorfo, vence e se lança ao espaço em uma nave reserva contando apenas com a companhia
de um gato.
É somente no segundo filme que descobrimos que Ripley não somente era mãe, mas que sua filha morreu durante o período que a heroína passou vagando no espaço. O luto pela perda de sua filha precede os eventos seguintes: quando é enviada para a colônia, Ripley se torna mãe adotiva de Newt. A substituição de um ente perdido é óbvia: Ripley teria uma segunda chance para aproveitar com Newt o tempo que não pode aproveitar com sua filha biológica. Essa representação positiva de maternidade é imprescindível para que o espectador se emocione e fique ansioso quando o Xenomorfo cruza o caminho das duas. Ripley conforta, protege, alimenta, nina Newt como se esta fosse sua própria filha. E não seria mesmo?
Em Alien 3, no entanto, Ripley é novamente privada da sua escolha de ser mãe, quando Newt morre em decorrência da queda da nave em que as duas estavam. A sucessiva perda de filhas e a impossibilidade de exercer sua escolha em ser mãe machuca Ripley. Isso é algo que, à segunda vista, parece ser uma violência tanto física quanto simbólica que é constantemente imposta à personagem, apenas para um suposto artifício de dureza: ela é mais forte se perder os filhos. Mesmo assim, a personagem não deixa de exercer uma função materna: agora, ela é responsável por gestar uma rainha de Xenomorfo dentro de si. Dessa forma, a personagem passa o restante do filme planejando sua própria morte, para que aquele ser não nasça. John L. Cobbs (1990), dois anos antes do lançamento de Alien 3, já apontava indícios de como a franquia era não só uma história sobre maternidade, mas também uma história sobre aborto. Talvez, o filme dirigido por David Fincher corrobore esse argumento. Cabe a você avaliar.
A proposta deste texto não foi mostrar o que é ser mãe ou o que é maternidade. Na verdade, todas as reflexões apresentadas até aqui seguem um único fio: que possíveis representações de maternidade podemos encontrar nas artes? Os primeiros filmes da trilogia Alien nos propõem uma outra forma de pensar não só a maternidade, em si, mas como essa chave interpretativa pode nos ajudar a entender desde

Alien - O 8.º Passageiro. Imagem: Divulgação

Alien - O 8.º Passageiro. Imagem: Divulgação
as dinâmicas entre os personagens até mesmo as escolhas de ambientações das histórias. Talvez eu esteja errado e esses longas não falem sobre isso ou não tenham esses temas no seu centro. Mas, se for esse o caso, não é curioso o fato de o pôster de divulgação do filme original mostrar, centralizado, exatamente o momento de um ovo rachando e uma vida nascendo?
Referências
COBBS, John L. Alien as an abortion parable. Literature/Film Quarterly, Maryland, v. 18, n. 3, p. 198-201, 1990.