VESTÍGIO
A Não Tão Fina Estampa
Paulo Júnior
Nascimento 1882 Falecimento 1967
Lançado em 2014 e dirigido por Christopher Nolan
Lançado em 1960 e dirigido por Alfred Hitchcock
A pandemia de Covid-19 vem afetando o mundo de modo bastante acentuado, em especial a partir de fevereiro de 2020. Desde essa data, uma série de atividades foi interrompida ou teve o seu fluxo reduzido, a fim de diminuir a curva de contágio. No Brasil, a teledramaturgia também sofre os efeitos deste momento, que obrigou a paralisação de novelas, por exemplo, fazendo com que reprises fossem levadas ao ar. Uma das primeiras reapresentações foi da novela Fina Estampa, de Aguinaldo Silva. A escolha da Rede Globo foi positiva na audiência, mas péssima no conteúdo. Fina Estampa mantém o semblante de dez anos atrás, e não é um semblante agradável.
Levada ao ar originalmente entre agosto de 2011 e março de 2012, a telenovela contou com 185 capítulos e uma audiência invejável, média superior a 39 pontos no Ibope. Contudo, a produção assinada por Aguinaldo esbarra fortemente nos temas que desenvolve. Todas as questões tratadas não conseguem ultrapassar o mínimo do superficial. Em diversos momentos, é possível assegurar que a trama presta um desserviço, ao abordar temáticas como a violência contra a mulher com certo ar de comicidade.
O roteiro de Silva é conhecido, não sendo afeito a deixar muitas situações vagas. Porém, em 2011 ele resolveu rechear a trama de momentos burlescos, entregando ao público um emaranhado sem solução e em eterno descompasso com o justificável. A produção não consegue firmar o pé no chão em nenhum momento, a começar pela construção dos personagens.

Apesar de apresentar núcleos bem definidos, os personagens de Fina Estampa estão sempre beirando o precipício do estereótipo, na maior parte das vezes atiram-se de cabeça. A protagonista interpretada por Lilia Cabral chega a ser carismática, cativante. A história da mãe guerreira que cria os filhos sozinha desperta empatia quase que automaticamente, contudo, o autor entregou para Lilia um arquétipo que se lambuza no senso comum. Há, ainda, uma inadequada masculinização de Griselda, e em determinado ponto uma feminilização, formando uma teia de compreensão que situa a protagonista como mais mulher a partir de um determinado ponto.
A antagonista de Christiane Torloni também enfrentou problemas. As irracionalidades de Tereza Cristina são rasamente explicadas. Até mesmo o ódio que ele direciona à Griselda não encontra respaldo adequado. A trama de Aguinaldo parece, na maior parte do tempo, um novelo de lã sendo enrolado por gatos. Parece que ele brinca com os personagens e com o público, e nessa brincadeira o roteiro se perde e, até hoje, segue perdido.
Uma das piores nuances da novela reside no personagem ancorado em Marcelo Serrado. Crodoaldo Valério é um estereótipo avassalador. Durante 185 capítulos, em pleno horário nobre da televisão brasileira, mostrou-se a homossexualidade como alívio cômico circense. Não havia em nenhuma situação a construção de linhas de profundidade que fossem capazes de arranhar a superficialidade do que existe no senso comum. O arquétipo de Crô é devastador, pois reafirma uma posição de subordinação gay, colocando o (a) homossexual como a serviço do divertimento de uma parte privilegiada do corpo da sociedade.
Fina Estampa (2011)
O personagem é constantemente atacado, agredido em sua orientação, e isso é seguidamente tratado como natural, com ares de piada. A devoção sem fim à rainha do Nilo, como se referia à Tereza Cristina, também insurge como fator problemático. Pois, nas entrelinhas do texto, há a costura de um complexo pensamento de que o homem gay deseja ocupar a posição do feminino. Outro diz respeito à relação entre ele e o motorista da mansão, Baltazar (Alexandre Nero), as ofensas são naturalizadas como se a homofobia do personagem fosse resultado de um desejo sexual reprimido, entregando mais uma vez ao público uma resposta vazia e engajada em aspectos limítrofes de senso comum.
Nessa linha, o modo como as agressões físicas que Celeste (Dira Paes) sofre de Baltazar, seu marido, são expostas e organizadas durante a telenovela é algo que merece ser observado. Apesar de haver ponderações positivas, como a percepção de que a mulher se mantém ligada ao agressor, em muitos casos, devido à dependência financeira, emocional e preocupação com filhos; há, também, momentos um tanto quanto difíceis, como o desejo de Celeste em corrigir o marido, ficando com ele e ameaçando a todo momento ligar para o juiz para prendê-lo. Existe, ainda, a transformação bastante adensada de Baltazar, que termina a trama como alguém quase que subordinado à esposa. Ou seja, ele passa a ocupar o extremo do outro polo da balança.
Fina Estampa se envolve, ainda, em rasidões ligadas à ascensão social, apresentando a sorte como fator determinante. O machismo também atravessa de modo abissal o todo do teledrama. Os personagens Quinzé (Malvino Salvador) e José Antenor (Caio Castro) são altamente machistas, e as formas dessa ‘superioridade’ aparecem em diversas circunstâncias. Entretanto, tudo é tratado com naturalidade, dispondo de pouco enveredamento racional.
Tramas secundárias também sofreram em demasia. A fertilização in vitro de Esther Wolkoff (Júlia Lemmertz) fica deslocada, em especial, pelo fato de parecer um contexto aquém do que se passa no restante da produção. Além disso, nenhum dos atores vive o seu melhor momento. Renata Sorrah e Dan Stulbach, atores de primeira linha, tinham pouco para trabalhar. Assim, a médica Danielle Fraser não passou de alguém com desvio de ética, e o empresário Paulo Siqueira, de um machista inveterado.
Fina Estampa tem muitos problemas, e a direção preguiçosa de Wolf Maia pouco ajuda. O diretor repete os mesmos processos, não há inovação e as cenas parecem se repetir indefinidamente. A direção de Wolf só não é pior do que sua atuação.
A produção de Aguinaldo Silva chega a sua primeira década ultrapassada, ela nasceu velha e agora parece caquética. Vale apenas como observação social do quanto se andou entre 2011 e hoje. A evolução ainda é longa, o caminho percorrido ainda é curto. Porém, aparentemente, não se aceita mais observar calado aquela estampa que, certamente, é pouco fina.

Personagem 'Crô', de Fina Estampa (2011)