O luto como um monstro a ser derrotado
Uma análise de Doctor Who em tempos de pandemia
Alexia Mesquita
A série britânica de ficção científica Doctor Who, considerada a mais longa do mundo, atualmente com 38 temporadas, está no ar desde 1963. Após ser cancelada no final dos anos 80, a emissora BBC a trouxe de volta em 2005, repaginada, mas com a mesma premissa: um alienígena fugitivo em uma caixa azul tenta salvar a Terra.
Dividida em Classic (1963-1989) e New Who (2005 - hoje), muitos atores já interpretaram o protagonista. O lugar agora pertence a Jodie Whittaker, que completou sua segunda temporada na série como a 13ª “regeneração” da Doutora. Repleta de representação LGBTQIA+, metáforas sociopolíticas e discussões filosóficas sobre a vida, o universo e tudo mais, a série foi importante para a sua época de estreia e segue pertinente ainda hoje.
Um de seus episódios mais impactantes é Heaven Sent, o 11° da 9° temporada. Tanto por sua direção e produção cinematográfica (Rachel Tallalay e Peter Bennet,
respectivamente), quanto pelo roteiro do showrunner da época, Steven Moffat. No entanto, o que mais chama a atenção e torna o episódio marcante é a atuação de Peter Capaldi, o intérprete da 12ª "regeneração" do Doutor.
A série é também conhecida por seus episódios com o conceito “monstro da semana”, uma concepção usada em outras séries do gênero, como Arquivo X e Além da Imaginação, na qual a cada episódio semanal os protagonistas deveriam lutar contra um monstro diferente e aprender sobre ele. No caso de Heaven Sent, o roteirista Moffat diz ter se desafiado a fazer do luto o monstro da semana.
O episódio
Ainda que funcione bem como uma história por si só, com início e final fechados, Heaven Sent é a continuação direta do episódio anterior, Face the Raven, no qual vemos o Doutor perder sua companheira e melhor amiga, Clara Oswald, e sua conclusão acontece no episódio seguinte, Hell Bent, que termina a temporada.
Assim, Heaven Sent chega como se o espectador estivesse espreitando todos os sentimentos confusos que o Doutor está experienciando e parte dos estágios de seu luto.
A psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross define os estágios do luto em cinco: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e o caminho para a aceitação.
Durante os poucos mais de 50 minutos de episódio, o espectador é levado junto com o Doutor para uma prisão, na qual não se sabe quem o colocou ali ou porquê o colocou. Sabe-se apenas que ele está sozinho, em um lugar desconhecido, com nada mais que um monstro que o persegue e o fantasma de sua ex-companheira como uma sombra que não sai de sua mente.
O episódio, então, é situado em apenas uma ambientação, com um único ator e um grande monólogo existencial, o que seria um grande risco a correr se não fosse pelo desempenho artístico de Capaldi, que faz com que o público não se canse de ouvi-lo mesmo que por bilhões de anos.
O castelo
Pouco se sabe sobre o castelo que prende o Doutor. A própria existência do lugar acarreta uma ambientação dramática ao episódio, sua aparência traz uma sensação de vazio e solidão, além de ter sido construído no meio de um oceano. Há portas e janelas que não levam a lugar algum ou mudam de lugar constantemente. Há crânios e manchas de sangue pelos cômodos e fora dele nenhuma das perguntas possui resposta.
A outra localidade que vemos trata-se do interior da Tardis, a máquina do tempo do Doutor, porém ela não passa de uma alucinação dele, que sonha em estar livre.
Toda a atmosfera melancólica é agravada pela fotografia e paleta de cores escolhida, com tons terrosos e uso de sombra e luz para indicar as emoções experienciadas pelo protagonista.
Quantos segundos há na eternidade?
Desde os primeiros frames, o espectador é desafiado a ficar atento aos mínimos detalhes: para que servem os monitores? De quem é o sangue no corredor? Que lugar é esse? Assim, somos levados a acompanhar os pensamentos e deduções do Doutor, que também está estranhamente confuso. Sentimento que ele habitualmente custa a revelar, mas não nesse episódio. Como um Senhor do Tempo, como são chamados os naturais do planeta Gallifrey, o Doutor tem um vasto conhecimento sobre o espaço-tempo, pode guardar em sua memória eventos mundiais que já aconteceram e que ainda virão a acontecer, mas não nesse episódio.
Em Heaven Sent vemos apenas um Doutor vulnerável, que bate de frente com essa postura onisciente e onipresente que costuma ter. Vemos apenas um deus solitário que é forçado a confrontar seus medos.
Sobre a escolha do isolamento do Doutor, o showrunner Steven Moffat disse em uma entrevista para a Doctor Who Magazine: “as pessoas sempre falam sobre o luto como estar sozinho, então fiz o Doutor absolutamente sozinho. O luto vem e encontra você toda vez que você para ou descansa, então dei a ele o ‘véu’. Luto é acordar com a mesma dor todos os dias e tentar ir esmagando-a, então dei a ele uma parede de diamante para esmurrar pelo resto do tempo. Basicamente, ele desgastou uma montanha com suas lágrimas”.
Isolado e desorientado, depois da raiva e sede por vingança, expressa-se seu próprio medo da morte. A imagem de sua companheira permanece fixada em seu pensamento e em seu discurso. Percebem-se demonstrações físicas disso, sua imagem em um quadro despedaçado, a lembrança que o Doutor criou da figura de Clara em sua própria mente e até mesmo no constante esquecimento de que ela não está mais ali.
A prisão, a qual o Doutor caracteriza como “uma casa mal assombrada totalmente automática, um labirinto mecânico projetado para injetar medo”, cansa-o, ele se pergunta se não seria mais fácil entregar-se ao que quer que fosse. Ainda assim, não se dá totalmente por vencido. Vemos que cada ação do protagonista, por menor que seja, tem seu significado, uma flor despedaçada para calcular a gravidade do local, observar as estrelas como forma de se localizar no espaço-tempo, etc. A situação, além de tudo, causa uma luta interna no protagonista, uma contradição entre continuar a lutar contra todas as probabilidades ou simplesmente desistir.
É difícil lidar com o luto enquanto se está sozinho, isolado e tentando sobreviver a um monstro ao mesmo tempo em que todo o seu mundo parece desabar ou isso é apenas um retrato do Brasil em quarentena? Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Toda a genialidade e loucura do Doutor podem ser observadas no episódio. A quebra da quarta parede é uma espécie de marca do Doutor interpretado por Capaldi, a olhada para a câmera no momento em que ele quer que o espectador se sinta reconhecido, como se o Doutor fosse inteligente o suficiente não apenas para sair daquelas circunstâncias, mas também para reconhecer que existe na ficção e fala com uma audiência. Como mostrado na HQ intitulada A Quarta Parede, no The Twelfth Doctor - Ano Dois, da editora Titan Comics, no qual o Doutor percebe que está em uma história em quadrinhos.
Algum tempo depois, o Doutor percebe quanto tempo está passando enquanto ele está preso naquele castelo, vivendo dia após dia como se fosse o mesmo, fugindo do monstro que ali vive com ele e à procura de meras pistas que possam talvez levá-lo a alguma saída. Dessa forma, anos se passam, décadas, milênios e mais. A duração de vida de um Senhor do Tempo é imensurável comparada a de um humano, isso não quer dizer que eles sejam imortais. Na verdade, nesse caso pode-se até dizer que viver tanto tempo seria um grande castigo, vivenciar cada segundo de uma eternidade.
Apesar de tudo, o Doutor queria viver, seja por vingança pela morte de Clara ou por culpa pelo mesmo motivo. Ele iria atrás de seu desfecho. Como dito pelo próprio em um momento de seu monólogo: “o dia que você perde alguém não é o pior, pelo menos você tem algo para fazer. O pior são todos os dias que esse alguém continua morto.”
"Regeneração" é a habilidade biológica que a raça dos Senhores do Tempo tem de alterar as células do seu próprio corpo. Esse processo é usado como artifício para explicar a mudança de atores no papel do protagonista. O Doutor/A Doutora já teve 13 "regenerações" oficiais.
Lançado em 2014 e dirigido por Christopher Nolan
“
Ao entrarmos neste mundo, nasce também outra coisa. Você começa uma vida e ela começa uma jornada em sua direção. É lenta, mas nunca para. Onde quer que vá, seja qual for o caminho, te seguirá, nunca mais rápida, nunca mais lenta… mas sempre indo. Você correrá, ela caminhará; descansará, ela não. Um dia, acabarão passando tempo demais no mesmo lugar, sentará parado demais ou dormirá profundamente demais e quando, tarde demais, se levantar para sair, vai perceber uma sombra bem ao lado. Sua vida, então, terá chegado ao fim”.
- 12° Doutor
O termo em inglês não tem uma tradução direta para o português, mas indica o maior responsável pelo andamento da série, que mantém o comando do que está acontecendo. São várias funções em uma só, podendo ser: roteiro, produção, elenco, direção, etc.

