CURTA UM CURTA
As romarias de Juazeiro do Norte a partir do olhar do filme Candeias
Rodrigo Capistrano
Ana Júlia Trajano
Candeias (2017) é um curta-metragem dirigido por Reginaldo Farias e Ythallo Rodrigues, realizadores caririenses pertencentes ao coletivo de produção cultural O Berro. A partir de um olhar documental e observativo, a romaria de Nossa Senhora das Candeias é retratada, sendo apresentada em todo o seu rico potencial imagético. A famosa procissão das velas é a principal condutora do filme, garantindo um grande impacto visual para os espectadores e retratando toda a sua carga simbólica, envolta em muita fé e devoção.
As romarias em Juazeiro do Norte possuem um significado relevante para a história de todo o Cariri cearense, sendo responsável por alavancar diversos aspectos culturais e econômicos da região. Especialmente em Juazeiro do Norte, as romarias estão diretamente associadas ao desenvolvimento econômico, pois o comércio é aquecido pelo turismo religioso, nas multidões de peregrinos que visitam o município em diferentes épocas do ano, estabelecido por um ciclo de romarias na cidade.
No calendário oficial, esse ciclo é iniciado na romaria de Nossa Senhora das Dores, homenagem à padroeira da cidade. Realizada no mês de setembro, tem como marco a “benção do chapéu”, que ocorre na última celebração feita no dia 15 de setembro, em alusão ao tradicional chapéu usado por Padre Cícero. A segunda romaria é a de Finados, celebrada no dia 02 de novembro, reunindo diversos fiéis por toda a cidade e tendo como principal visitação o túmulo do Padre Cícero, que se encontra na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A terceira das grandes romarias que fecha o ciclo é a de Nossa Senhora das Candeias. A sua origem está associada à apresentação de Jesus Cristo ao templo após quarenta dias do seu nascimento, motivo pelo qual o seu principal festejo ocorre na data de 02 de fevereiro. Essa romaria é conhecida especialmente pela procissão das velas, na qual cada romeiro realiza o percurso com uma vela acesa na mão, cantando os benditos que fazem parte da celebração.
O cinema sempre esteve interessado em acompanhar o registro das romarias, retratando em imagens e sons suas tradições e transformações. São muitas as obras audiovisuais que as retrataram, apenas para citar algumas: Visão de Juazeiro (1969/1970), dirigido por Eduardo Escorel, e Viva Cariri ((1969/1970), dirigido por Geraldo Sarno, que ganharam notoriedade por serem representantes de um importante movimento do documentário brasileiro, a Caravana Farkas; Milagre em Juazeiro (1999), de Wolney Oliveira e Juazeiro, a Nova Jerusalém (2001), de Rosemberg Cariry, são longas-metragens realizados por dois cineastas veteranos do cinema cearense de reconhecida trajetória; Também Sou Teu Povo (2006), de Orlando Pereira e Franklin Lacerda, e Candeias (2017), de Reginaldo Farias e Ythallo Rodrigues, trazem um olhar mais recente de realizadores caririenses para alguns dos elementos que compõe esse universo.
Consideramos que a romaria mais retratada nesses filmes é a procissão de Nossa Senhora das Candeias, possivelmente por conta do seu já citado rico potencial imagético. O curta-metragem Candeias retrata diretamente essa romaria, razão pela qual a obra foi escolhida para ser aqui analisada. O curta-metragem inicia-se com a frase “no caminho de Juazeiro nunca ninguém se perdeu”, trecho do bendito da Mãe de Deus das Candeias, cantiga de domínio público bastante conhecido pelos romeiros de Juazeiro do Norte. Em seguida, ouvimos um outro canto/oração sob uma tela de fundo preto, trata-se do Bendito de Adoração, ecoado por romeiros da cidade de Porto da Folha, estado de Sergipe. A peculiar canção religiosa, presente em muitas romarias, ganha ressonância durante mais de um minuto naquele fundo escuro. Essa abertura de Candeias funciona como uma espécie de ambientação, nos antecipando alguns dos elementos de ordem sensorial que serão trabalhados no decorrer da exibição do filme.
Essa presença inicial dos cantadores de uma outra localidade do Nordeste também insere de forma sutil uma das mais marcantes características das romarias de Juazeiro do Norte, que é a presença de romeiros de vários estados. Como a romaria de Candeias é a primeira do ano, encerrando o ciclo dos grandes festejos religiosos em Juazeiro do Norte, parte dos visitantes se beneficia por conta do calendário, período que geralmente encerra as férias profissionais e escolares de um grande número de pessoas. Alguns desses romeiros visitam a cidade pela primeira vez, porém, a grande maioria realiza esse deslocamento todos os anos, repetindo-o durante muito tempo.
A origem dos festejos de Candeias no Cariri é incerta, entretanto muitos acreditam que tenha sido criado por Padre Cícero com a finalidade de ajudar um ferreiro financeiramente, pedindo que os fiéis comprassem candeeiros para a procissão de Nossa Senhora das Candeias. A festa da romaria das Candeias também não tem uma data específica de seu início, porém os visitantes começam a chegar com intensidade em Juazeiro do Norte alguns dias antes da procissão das velas, que marca o encerramento dos festejos. Segundo dados oficiais da Secretaria de Turismo e Romaria da Prefeitura de Juazeiro do Norte, a romaria reúne cerca de 250 mil pessoas todos os anos, podendo chegar até a 300 mil pessoas.
Retomando a análise do filme, uma das imagens de grande destaque envolve o surgimento da cartela indicando o título da obra. O espectador se depara com filetes de cordões brancos que são mergulhados numa tina com água. Não sabemos inicialmente do que aquilo se refere, podendo remeter desde a tiras de barbantes molhados, até fios de macarrão em processo de cozimento. O título é formado a partir de uma fonte tipográfica que contribui para denotar, no comprimento das suas letras, quase que um prolongamento daqueles fios. As imagens que sucedem ao título são de uma apresentação de um reisado, tradição muito presente nas festas, seguida de fiéis que sobem as escadarias que conduzem até a estátua de Padre Cícero, ponto turístico mais visitado da cidade, localizado na Colina do Horto.
Lançado em 1960 e dirigido por Alfred Hitchcock

Fonte: frames do filme Candeias, disponível online.
O curta-metragem de Reginaldo Farias e Ythallo Rodrigues logo retorna para as imagens das águas, só que agora apresentando algumas canecas que mergulham nos potes localizados no interior do Casarão de Padre Cícero, espécie de museu e local para a realização de pedidos e promessas, que fica ao lado da estátua. Os potes estão sempre abastecidos com água, que em épocas de grandes romarias se transformam numa parada obrigatória para os romeiros, tanto para saciar a sede como para mais uma demonstração de fé, pois muitos deles bebem o líquido dos potes por considerar sua origem milagrosa. A montagem dessa sequência é concluída com o retorno para aquelas primeiras tinas de água, na verdade, grandes tanques de cimento onde estavam mergulhados os barbantes já descritos. O estranhamento inicial finalmente é revelado: a equipe de Candeias filma o interior de uma fábrica de velas, onde, na verdade, aquela água é parafina, matéria-prima básica das velas, e os filetes seriam os pavios, localizados no interior do referido produto.
Candeias apresentará esse percurso ao longo de todo o filme, associando a romaria ao desenvolvimento econômico da cidade. Em outras passagens, vamos identificar a venda daquelas velas circunscrita na movimentação comercial do Centro de Juazeiro do Norte. As velas e os artigos religiosos são as mercadorias mais procuradas durante as romarias, que representam um marco na economia da cidade. Muitos romeiros também viajam para aproveitar a oferta de mercadorias que são disponibilizadas, e as pousadas e hotéis, especialmente aquelas localizadas no centro da cidade, ficam lotadas durante o período em que as festas são celebradas.
Desta forma, os aspectos econômicos e religiosos estarão sempre relacionados, sendo difícil analisar as romarias sem apresentar o impacto delas para o comércio e o turismo locais. Outros ramos da economia impulsionados são os setores de alimentos e lazer: bares, restaurantes, shoppings, supermercados, mercadinhos e vendedores ambulantes também são beneficiados diretamente durante as principais datas dos ciclos de festejos religiosos. A aproximação da religiosidade com as variadas formas de lazer mundano já foram objetos de análise para muitos artistas e pesquisadores. Como exemplo, reforçamos o já citado curta-metragem caririense Também Sou Teu Povo, dirigido por Orlando Pereira e Franklin Lacerda. Nele, além da associação entre economia e religiosidade, fica evidenciada a forte relação entre o sagrado e o profano, quando o filme acompanha as vivências e os depoimentos de travestis que se prostituem durante os períodos das romarias de Juazeiro do Norte.
Contudo, é na representação da fé e da religiosidade das pessoas que se desenvolve a maior parte do filme Candeias: crianças e idosos que se emocionam durante as celebrações; registros de festejos e devoções; a preparação para a procissão das velas e o seu percurso; a condução das imagens sagradas no andor; a banda da cidade que acompanha o cortejo; a participação de milhares de romeiros com suas velas, cantando e adorando Nossa Senhora das Candeias. No dia da procissão, os fiéis concentrados na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, aguardando a benção das velas, cantam o bendito da Mãe de Deus das Candeias.
Os versos são entoados durante todos os momentos da procissão, acompanhados por romeiros que seguem o percurso cantando com fervor, demonstrando sua fé, pedindo e agradecendo. O impacto visual daquela caminhada também é percebido e sentido pelos romeiros, que registram com as câmeras de seus celulares os momentos que consideram ser os mais importantes.
A romaria das Candeias é acompanhada pelo grande deslumbramento dos fiéis que a festejam, encantamento e devoção que se desenvolvem num misto de sentimentos em todos que a celebram. Vale ressaltar que Candeias não possui nenhuma narração, toda a sua construção narrativa é desenvolvida a partir de um processo observativo e imersivo da equipe de filmagem. Isso também demonstra o poder de inventividade adotado pelo Coletivo O Berro, grupo criado em 1996 por alunos da antiga Escola Técnica Federal do Ceará de Juazeiro do Norte, que “ao longo do tempo se desdobrou em jornal, agenda cultural, realização de eventos e produtora cultura” (informações retiradas do blog do coletivo). Fugindo do perfil de um documentário tradicional, que normalmente utiliza depoimentos e narrações, Candeias investe na ousadia estética, calcado num maior investimento dos elementos sensoriais.
Bendita e louvada seja
A luz que mais ‘alumeia’
Valei-me meu Padrinho Cícero
E a Mãe de Deus das Candeias
Ó que caminho tão longe
E cheio de pedra e areia
Percorre o bom peregrino
Da Mãe de Deus das Candeias
No caminho de Juazeiro
Nunca ninguém se perdeu
Por causa da ‘luminura’
Da mãe de Deus das Candeias
A luz da Fé que nos guia
Aqui nos reanimou
Formamos grande família
De Cristo Nosso Senhor.
BENDITO
Mãe de Deus das Candeias.

Fonte: frames do filme Candeias, disponível online.
O lançamento oficial de Candeias ocorreu em Juazeiro do Norte no dia 1º de fevereiro de 2017, durante os festejos da Romaria das Candeias. O filme também teve importante repercussão nacional e internacional, sendo, por exemplo, exibido em festivais como o É Tudo Verdade, mais importante mostra de documentários da América Latina, e a Mostra Curta Brasil, na Bulgária, além de ser selecionado como finalista na categoria de melhor curta-metragem documental do ano de 2018, naquela edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Nesse sentido, Candeias representa também um destacado cinema caririense de qualidade, capaz de apresentar de maneira significativa nossa cultura local, se afirmando como uma força e uma realidade da produção audiovisual do Cariri, ainda passível de alçar voos muito mais altos.