DESTAQUE
E Quem São Eles, Afinal?
Cauê Henrique
Them, o fenômeno do terror racial e os limites da representação em jogo
Nascimento 1882 Falecimento 1967
Lançado em 1960 e dirigido por Alfred Hitchcock

O cinema e as produções audiovisuais do século XXI viram nascer uma espécie de gênero que satisfaz em si uma demanda muito questionada, intensamente debatida e pouco solucionada: o terror racial. As respostas para perguntas que não sabíamos como fazer são entregues por diretores, criadores, atrizes e atores negros como se uma janela de saberes compartilhados se abrisse depois de muitos anos fechada aos olhos e ouvidos. De Corra (2017), passando por US (2019) até Lovecraft Country (2020) contemplamos o surgimento de uma nova vertente narrativa, combinando as tensões subjetivas de personagens quase-reais-demais a uma série de elementos clássicos do terror e levando a experiência coletiva da raça a um novo nível argumentativo.
O terror racial traz consigo uma capacidade inovadora de amostragem da vivência de uma negritude assombrada, melancólica, enlutada e doída, que propõe ao sujeito negro uma psique fragmentada (Fanon) e uma experiência individual-coletiva de horrores que se sobrepõem à imaginação. Partindo de O que ficou para trás (2020), por exemplo, adicionamos, de forma bastante explícita, um valor entre os horrores: a violência virtual de entidades (uma memória assombrada) é sobreposta pela violência da racialização manifestada na guerra, na desconfiança, no processo de tornar-se um “ser” completo que no filme se apresenta pela projeção da moradia e da aceitação na comunidade.
Mas, antes que essa discussão fique muito complexa, é preciso ter em mente qual o local ocupado pela raça ao longo da construção histórica e social do audiovisual.
Estamos falando de um campo particularmente complexo de adentrar em função de suas várias nuances, seja tratando-se das questões técnicas, criativas ou de produção. As multilinguagens do audiovisual são constantemente colocadas como entraves para uma democratização das produções criativas. Para pessoas negras, estar nos cartazes de cinema, nas capas de uma plataforma de streaming ou, ainda mais dificilmente, nos letreiros marcando direções e criações, é inserir-se em um trajeto árduo de competições do mercado dominado pela supremacia branca desde suas origens.
Historicamente, as produções midiáticas foram voltadas para a branquitude desde que emergiram como possibilidade comunicacional, representacional e se estruturaram como um poder de controle da narrativa. É importante lembrar que o início da mídia como um mecanismo de histórias se dá em meio às tensões raciais do colonialismo e se desenvolve ao longo dos trânsitos sociais, dos conflitos políticos e dos processos de inserção dos negros na sociedade como ex-escravizados. O audiovisual é um elemento fundamental nesse sentido.
McClintock escrevendo Couro Imperial faz uma análise de imagem e discurso a qual vai nos mostrar que, durante anos, a propaganda foi o único meio no qual se permitia a presença de representações da negritude, seguindo sempre a lógica da violência colonial em que o sujeito negro é visto como um sujeito inferior, não-civilizado, ou ainda, sujo e desalmado. Nos períodos em que a publicidade atinge seus primeiros picos de funcionamento, temos propagandas ridicularizando, agredindo, bestializando e estereotipando personagens negros como uma forma de preservar e reproduzir o modo de pensamento adotado pelos poderes da supremacia branca colonial.
Quando o audiovisual surge, a lógica não é muito diferente. Um exemplo interessante são as produções para televisão que emergem entre os anos 40 e 50 nos Estados Unidos com forte influência dos estereótipos racistas do blackface, da apropriação de todo um conjunto de artes desenvolvidas nas culturas negras e de referências cruéis a estereótipos ou personagens violentos à identidade negra. Produções que muitas vezes se tratavam dos primeiros exemplos arquivados do entretenimento produzido para brancos em torno da violência e da violação de pessoas negras.
Para não nos estendermos neste texto (que poderia ser um livro se dependêssemos das ações midiáticas sobre raça para tal), a linha do tempo abaixo nos situa melhor nesse cenário:

Agora que sabemos exatamente onde está a raça no contexto do audiovisual, voltemos a falar sobre o terror racial e façamos a seguinte pergunta: qual o limite entre representar o racismo e abraçar a normalização da violência? Existe, sequer, um limite?
O ponto de onde parto para essa discussão está nos últimos anos de produção audiovisual, depois do nascimento do terror racial, compreendido especialmente nas críticas que vêm emergindo à série Them (2021), apresentada este ano pelo serviço de streaming Amazon Prime. Ao pensar neste texto, dei o devido destaque às críticas de outras pessoas negras e cogitei nem mesmo assistir a série para apenas tratar aqui de como o audiovisual pode ser violento com nossos traumas. Mas não resisti à curiosidade quase autodepreciativa em ver o que há de tão impactante na série para que cause esse tipo de reação. E vi.
Evitando spoilers (mas talvez não o suficiente, então recomendo cuidado), a história da série retrata o drama de uma família afro-americana nos Estados Unidos fugindo da violência racial do Sul e das leis Jim Crow. A família escolhe mudar-se para o Compton, um bairro nobre que à época ainda fazia parte dos planejamentos urbanos focados na segregação racial, com a série retratando inclusive o processo de red lining, muito comum na violência racial estadunidense. Lá, todos os familiares são confrontados com um racismo escancarado de toda a vizinhança, além de enfrentarem outras situações nas quais observamos violações estruturais contra pessoas negras, invasão, violências psicológicas diversas e em vários setores, etc. Além desse excesso de pressões, violências e estruturas de supremacia branca, a família é submetida a estágios progressivos de “assombrações”, que se constituem como alegorias fantasmagóricas do racismo em si, gerando terror a partir de estereótipos, anseios da racialização e de outros processos de fragmentação da psique negra (esse sendo inclusive um debate importante para a compreensão do percurso da série). Entramos em contato com traumas pessoais e familiares, demonstrações cruas de racismo, subjetivações dolorosas e uma melancolia que assombra a série do começo ao fim, algo como um isolamento daquela família que sofre, sem poder nomear, diversos níveis de violência. A narrativa é lotada de boas referências e faz delas um ponto forte das tensões do terror.
Mas, se existe um limite para a representação no terror racial, talvez Them possa ser apontada como a peça que o cruzou ou passou perigosamente perto. Tentando dar conta de diversos temas complexos, dolorosos e marcadamente violentos, Little Marvin entregou uma sequência de pesadelos paralisantes na composição de um roteiro que chega a agredir o espectador conforme a trama se desenvolve.
As cenas são sufocantes, a ponto de existirem momentos em que eu só consegui respirar após o corte; e se podemos pensar que esse deveria ser o ápice de uma experiência do terror, a sensação que restou para muitos é de que há uma agressividade que só atinge a nós, pessoas negras, gerando uma empatia quase violenta em relação às personagens. O questionamento que me assolou após uma das cenas iniciais, ocasião na qual uma abordagem policial invade agressivamente o cenário de um sofrimento familiar quase infantil, foi de se os espectadores brancos são capazes de respirar ao longo de uma amostra tão crua do racismo. Eu sei que não consigo e a sensação de tontura após cenas mais demoradas é inevitável, dando real utilidade à função pause.
Em termos gerais, a série invade lugares muito delicados e melancólicos da violência racial e do sentimento de outridade projetado sobre pessoas negras. Não o faz como Corra ou como O que ficou para trás, embora as semelhanças com o segundo sejam inevitavelmente gritantes. O recurso sufocante do terror racial de Them é de um desconforto chocante, que beira o fetiche da violência e gera uma tensão densa quase paralisante.
Talvez não seja o melhor ato do terror racial, mas definitivamente é um dos maiores.
Há sim uma genialidade inegável nas referências e contextualização da história, com recursos históricos de narrativas apagadas pela supremacia branca, apresentação de elementos dos estereótipos raciais, manifestações explícitas do racismo estrutural e uma localização temporal precisa ao nível de violência apresentado. Além disso, os elementos (distribuição das iluminações, composição de ambientes, troca de cores, inversões de ângulo da câmera, etc) escolhidos para compor criativamente a história contada são especialmente chamativos e curiosos, propondo sempre um outro nível de terror que se aprofunda conforme a série se passa e mais elementos são acrescentados. Contudo, devo destacar que o sentimento final de angústia me deixou suficientemente enojado para que todos esses aspectos fundamentais da narrativa ocupassem um plano distanciado, quase de uma memória dolorosa que compõe um plano de fundo do ciclo de sofrimento contínuo no qual a história nos aprisiona.
Enquanto nos situa historicamente, contextualizando uma das etapas mais complexas da inserção da população negra na sociedade estadunidense, a série pressiona pontos delicados que podem ser apenas reguladores de terror para quem não está familiarizado com todo o processo de violência racial e suas bases no solo dos EUA. Uma das questões que deram origem a este texto começa aí: em que medida pessoas que não experimentam as situações referenciadas podem acessar de fato alguma espécie de crítica ou de denúncia do racismo? Tratar de violência é uma escolha arriscada, porque o assunto promete à narrativa a mais vasta diversidade de tópicos a serem abordados no audiovisual, ao mesmo tempo em que apresenta nesses tópicos um campo minado de problemáticas que não resolvemos enquanto sociedade e podem explodir bem nas nossas caras.
Uma dificuldade que Them tem encontrado nas críticas parece ser justamente a rejeição massiva de um público racializado que seria fundamental para o efeito da história. Ao contrário do que ocorreu até então em Lovecraft Country, por exemplo, as fantasias do terror racial (que caracteristicamente ocupam um local ambíguo entre ficção e realidade), apresentadas na narrativa de Them, constituem tamanho desconforto que chega a ser violento assistir a obra inteira de olhos e ouvidos atentos. Além disso, muitos lugares são retomados de forma abrupta (como a objetificação de pessoas negras) sem que esse terror cru surta um efeito empático ou didático, somos apresentados a um excesso de violência que mais paralisa do que desestabiliza.
Um efeito semelhante foi observado, por exemplo, na minissérie Olhos que Condenam (2019), lançada pela Netflix. Na época, diversos influenciadores negros e negras alertaram outras pessoas negras a não assistir a série, pois poderia ser um gatilho, ameaçando inclusive a saúde mental de alguns espectadores. A cena voltou a se repetir conforme as expectativas animadas sobre Them se transformaram em uma frustração caótica de quem aparentemente tem as feridas expostas sem um propósito bem desenvolvido. Contudo, mesmo as dolorosas passagens da minissérie não foram tão arduamente criticadas e reviradas como acontece agora com a criação de Little Marvin.
Acho que um ponto interessante de adotar para ver essa repercussão seja pensar que o terror pelo terror não funciona tão bem quando estamos tratando de questões raciais (assim como de outras questões sociais delicadas). Especificamente neste caso, a violência brutal e constante se apresentou como um problema narrativo para muitos de nós. O que Peele parece ter entendido bem são os cortes, o limite exato em que o terror precisa ser interrompido para que a questão seja vista em toda a sua complexidade. Them traz pouquíssimas brechas de respiro e elas ficam gradativamente menores conforme a história se passa, e essa pode ser uma proposta narrativa interessante para tramas de terror, mas muitos espectadores sentiram falta de mais intervalos de alívio narrativo e, principalmente, de uma história mais complexificada nesses intervalos. Além disso, a retomada da história da entidade que os assombra surge quase abruptamente, sem um desenvolvimento convincente e amarra a narrativa racial em um ato final que ficou, em uma opinião pessoal, muito deslocado do restante da história.
Por fim, um incômodo particular que me deixou pensativo e angustiado após assistir a série foi em relação ao tratamento dado à loucura na violência racial. Em muitos pontos, a constante reafirmação de uma perda de sanidade, assim como da própria assombração, parece tomar o lugar de uma discussão cheia de nuances, desenvolvida de forma rápida e simples demais para o que pede o debate. Acho que em uma tentativa constante de chocar e impactar, a série deixa muitas brechas para uma compreensão rasa do racismo e muitos pontos importantes dão a entender que há mais contido nas pessoas negras do que no próprio sistema de supremacia branca.
Them deixa um gosto amargo na boca de muitos ao mesmo tempo em que parece oferecer um saboroso banquete aos fetiches da violência presentes na sociedade ocidental. Pode ser também que os pesadelos oferecidos tivessem que ser sufocantes ou não poderiam ser contados. De toda forma, é um trabalho que escancara a corda bamba característica das relações humanas, quase fincando um limite em si mesmo quando se trata de dar conta das questões de racismo através do terror audiovisual. Nesse sentido, não tenho dúvidas: afeta mais a nós do que a eles.