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RESENHA

Dos Esquecimentos Que Precisamos Lembrar

Érica Meneses
Gabriela Meneses

Neste modo de viver que conhecemos hoje, os extremos parecem estar fadados ao esquecimento. As questões em torno de crianças pequenas e idosos costumam não chamar atenção. Parece não haver uma razão que nosfaça, enquanto sociedade,estar com os olhos atentos para o início e o fim das nossas vidas. Além disso, estar em contato com aquilo que vivemos ou com aquilo que boa parte de nósviveremos - se não formos emboraantes - pode ser doloroso por tocar nas nossas vulnerabilidades. Então, se dói, se faz lembrar aquilo que o inconsciente quer esquecer, melhor deixar quieto. 

Mas há quem não se conforme e queira trazer essas reflexões mais esquecidas à tona. O documentário chileno Agente Duplo (El Agente Topo, no original), indicado ao Oscar 2021 na categoria Melhor Documentário de Longa-metragem, é exatamente isso. Dirigido por Maite Alberdi, o filme, que não foi financiado por um grande estúdio, reúne esquecimentos sociais – e dá voz a esses silenciamentos - desde a composição da equipe de produção até a concepção da narrativa. São mulheres, latino-americanas, produzindo um filme independente que aborda a velhice, dentro de uma instituição de longa permanência, numa proposta narrativa aparentemente simples e sem grandes efeitos.

O documentário conta a saga de Sergio, um espião octogenário, contratado por uma empresa, para investigar possíveis maus tratos praticados em uma das idosas que mora na casa de longa permanência. Para executar o trabalho e não ser percebido, ele passa a fazer parte do grupo de idosos institucionalizados. Aos poucos, as moradoras e os moradores do local vão fortalecendo a amizade com Sergio, sem notar que ele está trabalhando como detetive, produzindo relatórios quase que diários sobre o que acontece no espaço.

 

 

 

 

 

Na construção dessas relações, Sergio adentra em um conflito interno que se sobrepõe à sua mera função de detetive e o faz trilhar laços de aproximação, de compreensão e de afeto. A partir disso, o roteiro, de forma lenta e sensível, rememorando o ritmo da velhice, vai apresentando as moradoras daquele lugar, mostrando diferentes formas de envelhecer, e trazendo à tona questões que permeiam a terceira idade. De início, logo um dos mitos sobre essa fase da vida é superado: a assexualidade da pessoa idosa. Bertinha, uma vaidosa senhora, visualiza em Sergio um seleto candidato a um encontro de carinho amoroso e, apesar da educada rejeição, mostra que, na velhice, os interesses inerentes ao ser humano de atração e de cortejo sexual não estão esquecidos.

 

Petronila, a famosa Pepita, é a memória invejável que passeia pela vida através da leveza dos seus poemas e das suas poesias, acolhendo os novos chegados com um dedicado carinho, apesar de sofrer com a ausência de seus filhos. Em outro oposto, a Sra Rubenita oferece conversas agradáveis que, posteriormente, resultam no fugaz esquecimento do que se foi conversado através “do seu cérebro traidor”. A única informação que ela não se confunde é sobre a certeza que tem de que não recebe visita de seus familiares.

Martinha é a graça da autenticidade de vivenciar uma realidade paralela com a certeza da presença distante de sua mãe, sendo seu constante desejo encontrá-la. Ela não percebe a estratégia das enfermeiras de acalmá-la, ao forjarem ligações de sua genitora, e persegue uma rotina de fugas e de surrupiar objetos alheios para lidar com o abandono. Enquanto isso, a pacata e religiosa Zoila encontra acalento nas conversas com os santos espalhados pelo lar e em suas rezas. Assim como a silenciosa Juana, sinaliza personalidade de calmaria e de simpatia.

“O viver bem nos convida a uma velhice florida [de que] quando se há compreensão e amor, não se sente dor, nem há ferida” (Petronila). Então, Sergio, um viúvo autônomo e independente, acolhido pelo aconchego dos filhos, apesar da ausência da esposa, entrega-se a essa experiência avassaladora, em que sobressaltam aos seus olhos as vivências de velhices diferentes da sua e a realidade de múltiplas velhices em um mesmo contexto asilar. Para ele, a solidão é a pior coisa daquele lugar, que desponta múltiplas velhices diferenciadas, mas, ao mesmo tempo, semelhantes velhices de solidão e esquecimento.

O documentário, além de apresentar esse retrato de múltiplas e, ao mesmo tempo, semelhantes velhices, aponta ainda situações desiguais que se manifestam nesse momento da vida. O filme mostra diferenças de gênero (enquanto há 40 mulheres na instituição de longa permanência, apenas quatro homens vivem lá), socioeconômicas (personificadas inclusive nas diferenças dos quartos coletivos e dos individuais),

de relações familiares (famílias que permanecem presentes e famílias que não aparecem) e de capacidade funcional (idosos acamados e idosos ativos) em um mesmo espaço. 

O estilo do filme não segue os padrões esperados de um documentário. Lembrando a confusão que ocorre na velhice entre o real e o imaginário, a condução da narrativa deixa o espectador na dúvida. Muitas vezes não é possível fazer a distinção entre o real e a ficção. Outros aspectos que saltam aos olhos são a leveza e o bom humor com que o roteiro é conduzido, arrancando umas boas risadas, apesar de tratar de um tema envolto em situações dolorosas para condição humana, como a solidão e o abandono num momento de vida com tantas vulnerabilidades. 

Do ponto de vista estético, existem aspectos da fotografia que também surpreendem para um documentário. Antes de Sergio começar a jornada de investigador, há cenas que brincam com a luz e as persianas que lembram efeitos utilizados em filmes noir. No desenrolar da história, as idosas, por vezes, são apresentadas no detalhe e, em outros momentos, em plano geral, como se houvesse um observador olhando por detrás de portas e janelas. Há também recursos de câmera escondida, que Sergio utiliza para gravar cenas do local, desempenhando, assim, a atividade de espião. 

Por tudo isso, Agente Duplo é daqueles filmes despretensiosos, que abordam temáticas pouco vendáveis do ponto de vista comercial, entretanto se tornam grandiosos para quem se deixa capturar por eles. Exatamente por mostrar a condição humana de uma forma crua e, por vezes, puída, mas singela e bem narrada, o documentário toca, emociona, atravessa, afeta e deixa à mostra o ciclo natural da vida que gostaríamos de esquecer, no entanto se faz presente em cada um de nós a cada acordar.

Lançado em 2014 e dirigido por Christopher Nolan

Agente Duplo estava na lista dos cinco indicados para melhor documentário de longa-metragem no Oscar 2021. Também foi o único longa-metragem latino-americano presente na premiação.

 

É o primeiro filme chileno indicado para melhor documentário de longa-metragem no Oscar e um dos poucos do país selecionados nos últimos anos. 

 

Antes de ser indicado ao Oscar, o filme ganhou o Prêmio do Público no Festival de Cinema de San Sebastián e foi finalista no Prêmio Goya.

 

No Brasil, o documentário pode ser visto na Globoplay

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